[voz de âncora de jornal] Boa noite. Eu sinto que começo posts demais com pedidos de desculpas, mas esse é mais um deles, já que eu disse que teria post ontem e não teve. Ninguém me odeia mais do que eu mesma por isso, gente. Eu abandonei a ideia do post ontem cedo porque estava me sentindo meio estranha (eu sigo semi-gripada e aparentemente estou piorando), mas tinha esquecido que eu precisava postar aquele post porque eu queria que o post de hoje, este em que estamos, fosse o post de nº 400. Quando eu lembrei fiquei em dúvida sobre o que eu deveria postar hoje, mas eu sei que vocês vão gostar muito mais deste post do que do que do outro, então o post de ontem fica adiado até Deus sabe quando. Vocês podem estar se perguntando porque eu creio que vocês gostarão mais deste post, então: Bem-vindos ao primeiro conto de 2017!!
A primeira vez que vi o mar é um conto cuja a ideia em algum momento do ano passado, mas não conseguir escrever uma palavra que fosse por meses. O que me fez sentar e simplesmente escrever ele, foi o Projeto 12 Contos (vocês podem ler sobre ele clicando aqui) criado pela Dani no Tumblr de escrita No plural é mais legal. A ideia é tentar escrever um conto por mês em 2017, com base em doze temas, que podem ser interpretados de várias formas. O tema de janeiro foi verão e eu pensei: É agora ou nunca. E foi agora, ALELUIA. Eu não sei se vou participar do desafio em todos os meses, mas nos meses em que eu participar, eu pretendo postar o conto aqui, sempre no último dia do mês. E vocês também deveriam checar também os contos maravilhosos das outras pessoas que estão participando do desafio (a Dani posta os contos das pessoas que publicaram seus contos no Tumblr), como o conto da tatii "Dandara segue em frente" e o da Dani "Brisa Marítima".
Antes de irmos ao conto eu preciso dizer uma coisa, que é o motivo de eu ter querido escrever conto antes de janeiro de 2017: Minha personagem Moana não é, em nenhum sentido, baseada na Moana do filme da Disney. Apesar de eu adorar o filme e de já estar esperando por ele quando eu nomeei minha personagem, eu escolhi este nome porque é simplesmente maravilhoso e porque significa oceano. A história também foi inspirada pela música Ocean do Andreas Moe e apesar de não ser exatamente uma songfic, eu creio que a música combine com a leitura. Outra coisa: Podem gritar comigo pós-leitura. Eu mereço. Ao conto:




Eu me lembro da primeira vez em que ouvi a história. Era a sexta-feira da primeira semana de aula da terceira série. O dever de casa era trazer uma história surpreendente e única da nossa infância e contar ela na frente da sala inteira. Depois de um milhão de histórias de frases inconvenientes e de brincadeiras infantis, a professora chamou uma das alunas novas e ela foi para a frente da sala, sem nada escrito nas mãos e começou a falar:
- Mesmo morando longe da praia, meus pais se conheceram na praia, se casaram na praia e depois, por acidente, eu nasci na praia. Eles resolveram fazer uma viagem nas últimas semanas de gravidez da minha mãe para aproveitar o resto da vida apenas como um casal, mas a proximidade com o mar me deixou com pressa de conhecer o mundo e eu acabei nascendo na areia, antes da hora. A primeira coisa que vi quando abri os olhos foi o mar. Daí veio o meu nome, Moana, que significa oceano.
“Depois disso, meus pais notaram que tinham uma ligação com o mar e se mudaram para o litoral, onde eu vivi na beira da praia. Eu costumava começar meus dias andado pela beira do mar e terminar eles fazendo o mesmo. Todo pescador e vendedor de sorvete me conhecia desde bebê e algumas pessoas costumavam brincar que eu era uma sereia e contar a história de um bebê que nasceu na água do mar para os turistas, por mais incorreta que ela fosse. Eu só me sentia em casa de verdade quando estava até os joelhos de água salgada. Até o mês passado. Meu pai conseguiu um novo emprego efetivo aqui e a família inteira se mudou. Faz exatamente 28 dias que eu não vejo o mar e no momento eu estou o mais distante do que jamais estive das ondas e da maré.”
Os olhos dela ficaram sem foco de repente e a professora decretou o fim da história, a agradecendo. Ninguém pareceu entender muito bem o que tinha de tão legal naquela história, exceto pela professora - que deu a Moana o que ela dizia ser sua única nota dez que valeu a pena - e por mim. Eu achei a história incrível, mesmo que na época não entendesse o porquê. Eu era, sim, muito impressionável aos 9 anos, mas existia algo mais naquela garota e naquela história. Ela era tão jovem, mas sabia exatamente onde pertencia. Tão poucas pessoas poderiam dizer isso. De uma forma ou de outra, a história continuou na minha cabeça. A parte sobre ela ser chamada de sereia começou a aparecer em meus sonhos e durante as aulas eu ficava observando os cabelos cor de areia e os olhos azuis clarinhos dela e tinha certeza absoluta de que aquela garota tinha sido feita pelo oceano.
Eu nunca confidenciei a Moana o tempo que eu passei pensando nela naqueles primeiros anos. Os anos que se passaram com poucas palavras espontâneas trocadas e encontros fora da aula causados apenas por trabalhos de escola. Ela tinha o grupo de amigas dela e eu tinha o meu. Ninguém sabia que eu costumava sonhar com a garota-sereia, como se referiam secretamente a Moana. Só nos tornamos amigas na quinta série, quando todos os nossos amigos mudaram de escola ao mesmo tempo e nós fomos as únicas que ficamos para trás da turma anterior. Uma das primeiras coisas que ela disse quando percebeu que estava presa comigo até fazer amigos novos foi:
- Sabe o que eu nunca tinha percebido? Meu nome significa oceano e o seu, ilha. Que engraçado.
Eu concordei com a graça, apesar de não entendê-la, deixando de lado o fato de que eu já tinha pensado nisso, muitas vezes.
Nossa amizade floresceu na quinta série e nossas versões de 11 anos descobriram que tinham muito mais em comum do que os dois anos anteriores tinham permitido perceber. Tínhamos o mesmo ritmo para fazer trabalhos em dupla (explosões espontâneas de energia descoordenadas), tínhamos o mesmo gosto musical (o que quer que estivesse tocando na novela das sete), éramos as duas Team Jacob (era 2010 e nós duas tínhamos 11 anos, nos deixe em paz) e tínhamos a mesma ambição de viver da arte um dia (ela, da escrita; eu, do teatro). Nós também tínhamos aniversários bem próximos: 11 e 13 de fevereiro. A amizade tinha tudo para funcionar perfeitamente, como funciona aos 11 anos - exceto pelo fato de que eu não conseguia ser completamente sincera com ela.
Durante aquele primeiro ano, eu ficava me perguntando o tempo todo quando deveria contar para ela. Quando eu fosse à casa dela? Jamais, os pais dela poderiam ficar ofendidos. Quando ela fosse à minha casa? Não, sempre tinha alguém por perto e eu não queria que ninguém ouvisse aquilo. Na escola faltava oportunidade porque nós sempre estávamos ocupadas com alguma coisa. E quando a gente saía para outros lugares, era com nossos outros amigos e falar sobre aquilo do nada poderia ser estranho. As oportunidades de contar a ela escapavam por entre minhas mãos e antes que eu pudesse perceber, o ano letivo acabou e ela ainda não sabia. Na primeira semana de férias, Moana me ligou animada contando sobre a viagem que os pais dela tinham combinado. Ela não parava de falar sobre a cidade natal dela e sobre todo mundo que ela veria e o quanto ela queria que eu fosse para poder me apresentar a todo mundo e me mostrar os lugares de suas lembranças mais antigas. Foi quando eu juntei coragem suficiente para dizer:
- Moana, eu nunca vi o mar.
O outro lado da linha ficou em silêncio por vários minutos e eu comecei a me xingar por ter contado aquilo por telefone.
- O quê? - Ela disse quando pareceu se recuperar.
- Eu nunca fui à praia.
- Mas, Isla, você tem 11 anos.
- E nunca saí da cidade. Nós moramos bem longe da praia, por sinal.
- Sua família nunca teve vontade de viajar e ir à praia?
- Meus pais foram à praia na lua de mel deles, eu acho. Mas a gente nunca teve como viajar em família. Minha mãe mal tira férias e quando ela tira, meus avós e tios vem para cá, nunca dá para sair da cidade.
- De onde veio seu nome então?
Fechei os olhos, odiando falar sobre isso.
- Da música La Isla Bonita da Madonna.
- Meu Deus. - Ela soou horrorizada.
Ficamos em silêncio por mais tempo depois disso. Eu tentava imaginar a cabeça de Moana tentando conceber a ideia de uma pessoa nascida dois dias antes dela, que nunca tinha enfiado os pés na areia ou mergulhado na água do mar. Quando o silêncio se tornou incômodo, perguntei:
- Você está chateada?
- Não. - ela respondeu, de uma forma que me fez imaginar ela balançando a cabeça. - Quer dizer, sim, mas com a situação, não com você. Eu preciso dar um jeito nisso. Minha melhor amiga, não conhecer a praia? O horror! Assim que eu voltar de viagem a gente vai pensar um jeito de levar sua família à praia.
Ela desligou a ligação depois disso, decidida. Eu comecei a sorrir feito boba. Moana tinha me chamado de melhor amiga. E queria me levar para conhecer o mar, mas principalmente a primeira coisa.
Quando ela voltou, realmente tinha mil planos de viagem para a minha família. Ela conseguiu convencer até mesmo meu pai a criar a viagem perfeita com ela, mas o trabalho da minha mãe não permitia que a viagem fosse imediata. Ela era dona de uma rede de supermercados e cada novo supermercado significa mais trabalho, menos tempo em casa, nada de férias. Meu pai pegava horas extras e evitava férias, com a promessa de que um dia todo mundo sairia de férias juntos, por bastante tempo. Esse “um dia” era adiado anualmente. E anos se passaram sem que eu deixasse a cidade. Mas os planos de Moana e as histórias que ela inventava sobre como seria a nossa viagem, algumas até mesmo escritas, fizeram com que o tempo parecesse passar mais rápido.
Justo quando a viagem e a primeira vez que eu veria o mar parecia perto, ela foi adiada para o mais distante possível. Moana descobriu quando nós tínhamos 14 anos. Hoje em dia eu fico pensando nos sinais do corpo humano. Tontura repentina pode significar falta de comida, insolação, queda de pressão repentina ou um tumor no cérebro. Mas você nunca espera pelo pior quando o assunto é algo tão simples quanto uma tontura. Você assume que coisas menores aconteceram, mesmo quando a pessoa que sente a tontura em questão diz que comeu bem, dormiu bem e nem chegou perto do sol. Só depois de muitas tonturas repentinas, de dores de cabeça inexplicáveis e outros sintomas mais preocupantes, é que uma busca maior foi feita e o tal tumor foi encontrado. O diagnóstico foi assustador para todo mundo, mas a negação que atingiu Moana quando ela recebeu a notícia foi mais assustadora ainda.
Ninguém entendia porque ela tinha preferido entrar em um universo próprio, onde nada daquilo estava acontecendo, mas eu sim. Aquela era ela. Quando ela queria mudar algo, se enfiava em um mundo onde aquela mudança já tinha acontecido. Criava situações e histórias, complexas. Ela tinha feito aquilo por anos e me convencido de que eu conheceria o mar, no próximo feriado, no próximo fim de semana, nas próximas férias. Ela criou diversas histórias que mascararam minha realidade, que ela considerava injusta. E quando a realidade dela se tornou injusta naquele nível, eu precisava continuar ao lado dela, inventando histórias.
Um dia, nós estávamos no hospital, ela cheia de tubos, recebendo centenas de medicações dolorosas e eu do seu lado contanto a fofoca mais polêmica da escola naquela semana. Ela parecia aérea haviam vários minutos e eu me perguntava quanta dor ela estava sentindo, quando ela se virou para mim e disse, com toda clareza nos olhos:
- Como você imagina que o mar seja?
Eu a observei por um instante. Nunca imaginaria que ela estava pensando naquilo, mesmo que isso não devesse me surpreender. Coloquei o cabelo atrás da orelha e me ajeitei na poltrona antes de dizer:
- Eu tenho uma imagem fixa na cabeça quando dizem a palavra “mar”. De uma garotinha, meio sereia, com a água do mar até o meio do joelho. O cabelo dela é cor de areia e seus olhos da cor do mar. Ela olha para água, mas está exatamente a enxergando. Ela a sente. Contra pele e dentro dela. Ela pode sentir a maré subir e baixar, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Mas ali, parada dentro da água e sentindo a energia da infinidade do oceano, ela se sente em casa. Como se soubesse que é ali que pertence e que nunca deveria sair dali. Eu já vi o mar, Moana. É para isso que servem fotos e vídeos. O que me resta é senti-lo.
Uma lágrima escorreu pela bochecha dela e eu me apressei para secar.
- Eu não consigo parar de pensar que tudo deu errado porque eu fui embora, mas aí eu me lembro de você e penso que eu não mudaria nada. - ela sussurrou.
Eu engoli em seco.
- Tempestades também acontecem no mar. - disse, devagarzinho. - A maré vai baixar logo, logo. E então nós duas nos mudaremos para a praia como a gente prometeu que faria quando terminássemos a escola.
Moana sorriu com as metáforas, mas eu sabia que ela não acreditava em mim.
- Promete que vai me levar para casa, Isla. - ela disse, mesmo assim. - Independente do que aconteça.
Eu prometi porque era a única coisa que eu poderia fazer.
Perdi Moana cinco dias depois do aniversário de 16 anos dela. Uma semana depois do meu. Nós não nos mudamos para a praia e nem ela conseguiu que a viagem com toda a minha família desse certo. A família dela considerou cremá-la e espalhar suas cinzas pelo mar, mas a ideia foi deixada de lado por ser muito cara. Ainda assim, seus pais deixaram a cidade dois meses depois do velório, para retornar à cidade natal da filha. Por quase dois anos eu acreditei que isso tinha sido levá-la para casa. A simples ideia de chegar perto do mar depois que ela morreu, me deixava no mínimo angustiada e nos piores casos me fazia cair no choro por horas. Então na última semana de aula do terceiro ano, um envelope chegou pelo correio. Tinha o nome da mãe de Moana, mas não tinha nada além de outro envelope dentro, com a frase “Para abrir ao fim do ensino médio” na letra da minha melhor amiga.
O envelope descansou no meu criado mudo pelos dias que faltavam até lá. Só de pensar nele eu ficava nervosa e com o coração apertado. Não fazia ideia do que Moana poderia ter planejado. Nos quase dois anos desde que tinha a perdido, ela não saia da minha cabeça em nenhum deles. Eu passava por todos aqueles clichês de luto diariamente, de odiar acordar para lembrar que nunca mais a veria a sair da sala toda vez que alguém dizia seu nome ou falava sobre sua doença. Eu achava que ao menos a metade dos meus colegas estava feliz por não precisar mais lidar comigo quando a escola acabasse.
O último dia do terceiro ano chegou rápido e eu evitei comemorações longas para ir para casa abrir o envelope. Lá dentro, junto com três fotos nossas que eu não sabia que ela tinha revelado e uma história que ela escreveu sobre uma sereia que não podia enxergar, mas podia sentir e controlar o mar, estavam três notas de cinquenta reais e um bilhete: “Isso é quanto custa para ir de ônibus até a praia mais próxima. Vá sentir o mar. Você me prometeu me levar para casa.”.
E então eu fui. Eu estou.
Com os pés afundados na areia, começando o dia na beira do mar. Escolhi o nascer do sol porque é quando o mar tem o tom mais parecido com os olhos dela. Não tenho coragem de me aproximar, ao mesmo tempo tomada de emoção e me sentindo sobrepujada pela visão de toda aquela água.
Eventualmente, a energia me vence e eu me aproximo. Toco na água com o dedão e descubro ela bem mais fria do que eu pensava ser. Mas meus pés querem mais e eu dou um passo para frente. Me aproximo e me aproximo, me afundo e me afundo. E quanto vejo, tenho a água nos joelhos. Estou na casa de Moana.
É quando eu resolvo mergulhar.