Esta resenha contém spoilers da série VOCÊ da Netflix. Trechos importantes da trama serão discutidos com profundidade e as reviravoltas, explicadas. A série trata de temas sensíveis para diversas pessoas e tem classificação etária de 18 anos. Esses temas também fazem parte desta resenha. Tenha isso em mente antes de ler.


A segunda parte da 4ª temporada de VOCÊ chegou à Netflix na última quinta-feira, dia 9, e conseguiu consagrar a série entre os pouquíssimos programas ficcionais da plataforma a ter mais episódios do que deveria.

Para quem não é familiar com a história da série: não se preocupe, daqui para o final deste texto você saberá mais do que quer. Na 4ª temporada, nosso protagonista Joe Goldberg (Penn Badgley) muda de cidade mais uma vez, indo atrás da sua obsessão mais recente na Europa, para onde ela foi fugir ao ser alertada pela esposa de Joe sobre quem ele realmente era. O trailer da série surpreendeu os fãs por se passar em Londres, quando o último episódio da terceira temporada acabou em Paris. Mas sabe como é, a Netflix já tem uma série que se passa em Paris.

Em Londres, Joe se tornou Jonathan Moore, um professor universitário misterioso que só quer aproveitar suas férias europeias e fugir do seu passado e de todas as pessoas que ele matou com seu número de CPF antigo. Quanto à sua obsessão antiga, logo no primeiro episódio nós descobrimos que Joe deixou Marianne (Tati Gabrielle) livre, para provar a ela que ele é um homem melhor do que ela acreditava que ele seja. Como fez com outras de suas *tosse* amadas *tosse* antes disso, Joe está disposto a provar para ela que é um homem melhor. De começo, não fica muito claro como ele pretende fazer isso, considerando que ele deixou ela ir e cortou qualquer contato com ela. Mais tarde na temporada, a gente descobre que a resposta é extremamente previsível.

Enquanto a resposta não chega, Joe fica Londres, aproveitando sua convivência com novos personagens. Incluindo: 1) gente rica metida a besta, 2) gente burra e rica metida a besta, 3) gente burra, rica e metida a besta só que, na verdade, eles perderam todo o dinheiro e estão escondendo isso 4) personagens hipócritas e cruéis, 5) gente preconceituosa e imbecil e, 6) uma adolescente não-branca inteligente que descobre quem ele é eventualmente. Ou seja, personagens que você já conheceu nas últimas temporadas só que agora eles são interpretados por pessoas diferentes e têm sotaque britânico.

A verdade, é que no quesito personagens, VOCÊ se tornou um grande The Real Housewives of __________, se passando em uma nova cidade a cada temporada. E de certa forma, faz sentido. Joe atrai sempre o mesmo tipo de pessoa. E ele mata sempre o mesmo tipo de pessoa. Pobre, forçado a cuidar de si mesmo, abandonado e traumatizado, o homem odeia todo mundo que é rico, amado ou minimamente feliz. E os personagens acabam sendo sempre esse grupo de pessoas, só que em Nova Iorque, depois em Los Angeles, depois no subúrbio da Califórnia e agora em Londres. Ele é como uma versão caixeiro viajante do Coringa.

Na primeira parte da temporada, um recurso narrativo adorado por séries que estão no ar há muito tempo é utilizado: O famigerado WHODUNIT (Quem fez isso?) onde um personagem investiga um grupo de potenciais suspeitos de um crime. O crime neste caso? Alguém começou a matar vários homens ricos e problemáticos da alta sociedade londrina. A primeira vitima foi deixada em cima da mesa da casa de Joe, após ele acordar de uma noite de bebedeira e drogas, como forma de incriminá-lo. Como não pode chamar a polícia porque sua simples presença em Londres envolve 200 crimes internacionais, Joe faz a única coisa possível: tritura o corpo e o esconde, ao som de I Like It da Cardi B. Em seguida, ele precisa investigar o assassinato entre o grupo de pessoas que estava com ele na festa.

Ele começa essa investigação fazendo perguntas para a sua aluna Nadia (Amy-Leigh Hickman) que como boa fã da Agatha Christie o informa todas as normais formas que um WHODUNIT normal pode terminar. É claro que isso e outras 98 coisas ativam as suspeitas de Nadia sobre ele, como ativaram as de Ellie (Jenna Ortega) na segunda temporada. Mas isso é um problema para depois do WHODUNIT ser solucionado. Quando a primeira parte da 4ª temporada termina, o assassino é o mais óbvio possível: o cara charmoso de quem Joe não desconfiava porque o admirava. Rhys Montrose (Ed Speleers), nesta parte, se mostra um sociopata de marca maior. Para o público ele é um homem com vida triste que cometeu erros e agora está em seu arco de redenção (meio como Joe vê a si mesmo), mas na verdade ele é um serial killer com sede de poder e controle (meio como Joe realmente é).

Enquanto Rhys mata todo mundo que se mete no caminho dele e tenta convencer Joe a se juntar a ele e liberar seu lado mais cruel, Joe parece estar envolto em um grande desenvolvimento de personagem. Todos os seus crimes agora são realmente cometidos para proteger seu grupinho de amigos, ao invés de só proteger a si mesmo. A principal pessoa que ele tenta proteger, até mesmo de si mesmo, é Kate (Charlotte Ritchie) (de Call de Midwife, Ghosts e Careful How You Go) (a melhor parte da temporada), namorada da primeira vítima que aos poucos se aproxima dele, revelando seu lado sombrio, frio e calculista por trás da mulher bem sucedida, carinhosa e foda que ela parece ser no começo.

Mas ao contrário das outras, Kate não se transforma em obsessão para Joe. Afinal, Joe está envolvido em um grande crescimento pessoal e entende que toda vez que ele tem uma "Você", ela acaba morrendo ou sofrendo. Nesta temporada, a única obsessão de Joe é Rhys. Ele precisa destruí-lo antes que Rhys o destrua. Claro que no meio do caminho ele e Kate se pegam várias vezes e ele começa a desenvolver um afeto quase que sadio por ela. Bonito de ver, se você quer que monstros encontrem amor verdadeiro. Os dois mencionam seu passado sombrio, que parecem ver do mesmo jeito: como algo a fugir e fingir que não aconteceu com eles.

Para quem não sabe ou lembra, Love (Victoria Pedretti) a obsessão de Joe na 2ª temporada, que se tornou sua esposa na 3ª, após engravidar dele, também foi uma pessoa de passado sombrio. Só que Joe começou a odiar Love após descobrir que ela já tinha matado uma pessoa ou três. Qual a diferença entre Love e Kate, você se pergunta? Love era reativa e passional. Ela sentia ciúmes e deixava transparecer. Kate é calculista. Mente com facilidade e não deixa transparecer nada que não queira. Ela também sabe se vitimizar como ninguém. A ponto de usar como justificativa para não gostar do pai algo que ela mesma fez. Mas o principal é que ao contrário de Love, que fazia muito por amor a si própria e seus desejos, Kate se odeia com a mesma profundidade que Joe se odeia. Ela odeia quem é, mas se sente incapaz de parar de ser quem é. E culpa todo mundo ao seu redor por sempre "trazê-la de volta à sua pior versão", nunca a si mesma.

Olhando em retrospectiva, é sobre isso que a 4ª temporada é: o quanto Joe odeia a si mesmo. No sétimo episódio, é revelada a grande reviravolta da temporada: Rhys Montrose, grande assassino, é somente uma manifestação da imaginação de Joe, que depois de bater a cabeça ao colocar Marianne na jaula de vidro que colocou todas as suas vítimas, criou uma compartimentalização da própria personalidade baseada na celebridade mais falada de Londres naquele momento, com quem ele se identificou por sua história de superação. A manchete, portanto, é "Serial killer bate a cabeça e fica mais doido ainda".

Sendo justa, o anúncio da Netflix de que Victoria Pedretti retornaria como Love na segunda parte da temporada tentou oferecer o fanservice, mas acabou foi dando spoilers de que alucinações aconteceriam. Eu percebi que Joe tinha assassinado todo mundo e estava tendo alucinações quando no começo do 7º episódio, Joe conhece o pai de Kate e ele pergunta o que Joe sabe sobre Rhys. O amigo imaginário de Joe tinha dito anteriormente que precisava de Tom Lockwood (Greg Kinner) (pai de Kate) morto porque elesabia demais. Joe tenta se virar contra Rhys e conseguir provas contra ele, mas Rhys percebe (porque ele não existe de verdade) e mostra a Joe o passaporte de Marianne dizendo que a sequestrou. No dia seguinte, uma fofoca sobre Rhys (o de verdade) sai nos tabloides e ele foge para o interior. Tom diz pra Joe onde Rhys está e diz "Pega ele, frita ele, faz purê!". O que Joe corre pra fazer porque ninguém mexe com Marianne. E aí sim, depois que Joe mata Rhys (o de verdade), vem a revelação que o Rhys de verdade nem sabia que Joe existia e que Joe enlouqueceu (10% mais).

Os episódios após este acontecimento e até o fim da temporada são alguns dos episódios mais frustrantes da história da televisão. Quando eu assisti a primeira parte, eu achei que mandar Joe para outro país e fazer um WHODUNIT já era prova de que a série tinha tido temporadas demais e que os escritores estavam sem ideias. Ambos são recursos narrativos usados na TV com frequência, o suficiente para que sejam cansativos de assistir por si só. Mas em VOCÊ eles conseguiram ainda mais, porque a renovação da série já a fadou ao fracasso.

A 3ª temporada teve um final quase perfeito. Aberto, é claro, mas somente a sensação de que Marianne tinha conseguido fugir era o suficiente. Ficaria nas mãos da audiência decidir se Joe a havia encontrado ou não, com base em tudo que a gente já sabia sobre Joe. Desta forma também, o próprio Joe tinha um final coerente, que deixa claro que ele não é capaz de mudar e que agradaria quem torcia por ele e quem não torcia. O fim também reforçou o lado cinzento de Joe, quando ele protegeu o próprio filho, assim como tinha protegido Ellie na segunda temporada. 

A 4ª temporada, então, resolveu subverter expectativas ao tentar fazer o público acreditar que Joe estava mudando, se tornando um pouco melhor e se transformando em um antiherói, ao invés do psicopata total que sempre foi. Em seguida, jogar 6 episódios e 6 horas da minha vida fora com uma reviravolta que parece aquela teoria do Reddit de que Phineas e Ferb é a Candice em coma imaginando tudo. A reviravolta é fraca porque qualquer pessoa que assistiu as três primeiras temporadas sabia muito bem que o Joe fazer algo cruel e injustificável era uma questão de tempo. Se tivesse acontecido na primeira temporada, talvez fosse o tipo de momento que te deixa sem ar. Na 4ª é mais um "ok, e...?" porque todos já conhecem o personagem bem o suficiente para considerar algo assim como uma possibilidade.

No fim das contas, a voz narradora do Joe tenta convencer a si mesmo e ao público de que não é uma pessoa ruim e de que, no mínimo, ele faz o que faz por amor desde a 1ª temporada. Na mente dele, os assassinatos eram somente uma coisa que ele era obrigado a fazer, tipo lavar a louça. Matar era a única forma de resolver seus problemas. Mas isso é uma série de TV, não um livro com narrador suspeito (apesar de ser baseado em um livro), a gente assistiu o Joe matar. E matar e matar e matar. Não interessa o que o narrador diz, a gente tá assistindo.

Transformar este conflito entre o que Joe acredita e quem Joe é em um personagem foi um erro narrativo. Essa dualidade de Joe já foi demonstrada. Através de sua reação aos assassinatos de Love, através da sua relação com seu filho, através dos flashbacks com a mãe dele, através das próprias táticas de manipulação que ele usou com as vítimas e, finalmente, através de outras alucinações que Joe já tinha tido anteriormente quando estava drogado ou sonhando. Arrastar o público por 6 episódios só pra dizer algo que a gente já sabia?? Pelo amor de Deus.

No final, Rhys nem é o aspecto que mostra a aceitação de Joe de que ele é uma pessoa ruim que faz coisas ruins. Nadia é. Enquanto na segunda temporada, Joe deixa Ellie viver e viver bem porque se vê na menina pobre e inteligente, na quarta, Joe coloca toda a culpa de seus assassinatos mais recentes na jovem. Essa foi a verdadeira forma de demonstrar que Joe "aceitou" seu lado cruel agora que está com Kate. Na primeira oportunidade, Joe usa o acesso ao dinheiro de Kate para ameaçar uma menina vulnerável de 19 anos a manter seus segredos e tomar responsabilidade por seus crimes. Moral da história: em VOCÊ, ou você morre o Coringa ou vive tempo suficiente para se tornar o Batman.

A temporada termina com ANTI-HERO da Taylor Swift tocando enquanto Joe Narrador atualiza o público dos acontecimentos recentes — o que deixou um gosto horrível na minha boca. Um dos fatos é que Nadia está presa e se recusa a dizer qualquer coisa à polícia, confessando ou se defendendo. De acordo com ele, ela fez isso porque é inteligente e sabe que se disser qualquer coisa, ele não vai medir esforços para mantê-la presa ou fazer algo pior com ela. Como mulher não-branca, minha interpretação do silêncio de Nadia foi outra: Ela não se defende porque se culpa — ter colocado o próprio namorado na situação que causou a morte dele não é algo que ela se perdoaria facilmente por ter feito. Ela é inteligente o suficiente para saber que confessar um crime que você não cometeu sempre dá errado, mas ela prefere se martirizar e se resguardar em uma cadeia do que atacar o homem branco que se safou várias e várias vezes. É uma luta perdida.

E este é o ciclo narrativo que VOCÊ conta desde 2018, em 4 temporadas: Não importa o que aconteça, o homem cruel vai vencer. Vai se safar. Vai encontrar o amor, o dinheiro, a segurança. E não me entendam errado, essa história é uma que eu consigo apreciar na ficção, quando ela é contada do outro ponto de vista: Das mulheres que tentam destruir o sistema. Mesmo quando elas falham, mesmo quando elas quebram. Você nunca se arrepende de torcer pela heroína que sacrifica tudo por uma mudança que seja. Eu poderia assistir isso um milhão de vezes porque parece a vida real, cada dia é uma batalha dessas. Mas o ponto de vista do homem? Não me interessa o suficiente para assistir outra temporada.

Joe Goldberg não é um anti-herói. Ele foi e nunca será. Não foi um anti-herói na primeira, nem na segunda, nem na terceira temporada. Na quarta, a tentativa de mostrá-lo como tal, só para dizer "PEGADINHA" no episódio 7 falhou miseravelmente porque os 30 episódios anteriores já tinham demonstrado que não tinha anti-herói nenhum ali para a gente torcer. Não um personagem a ser compreendido (porque nenhum dos traumas dele justifica nada do que ele fez), não um "cinnamon roll who could kill you" (porque até o sorriso do homem é assustador), nem um war criminal daddy para o TikTok amar (a Kate é o war criminal daddy da temporada, Joe é só um criminal mesmo). Tudo que Joe Goldberg é, é um vilão contando a própria história e essa história está levando tempo demais para acabar. Se eu quisesse mais disso, era só desbloquear o Elon Musk no Twitter.

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Quem acompanhou os últimos posts pode ter notado que o post de hoje representa uma leve mudança na agenda de posts que eu tinha mencionado, já que falta um post dos 25 antes dos 25. Como eu mencionei alguns meses atrás, (em um post onde eu, ironicamente, referenciei Anti-Hero), sempre que eu tiver um assunto que renda post como este rendeu, eu devo fazer algo assim e correr aqui pro blog. Dessa forma, eu devo publicar mais resenhas/textão sobre a mídia que eu consumo nos próximos meses, rendendo mais conteúdo monetizado aqui. O outro post deve sair mais tarde esta semana ou na próxima.