"Sua luxúria horrível para sangue vivo fornece o vigor de sua existência vigília. O vampiro é propenso a ficar fascinado com veemência cativante, assemelhando-se a paixão do amor, por pessoas particulares. Em busca desses, ele vai exercitar a paciência inesgotável e estratagema, para o acesso a um determinado objeto de desejo." - Carmilla

 A 9ª sinfonia de Bethoven deveria ser considerada uma espécie de tortura antiga, era isso que ela pensava esperando o ônibus, com a melodia ainda ecoando na cabeça. Aquele dia, a aula de piano havia sido especialmente tortuosa, mesmo que pelos últimos 7 anos, Olívia tenha percebido que esse tipo de humor cruel vindo da Senhora Matos é bastante comum.
O ônibus está atrasado 30 minutos e provavelmente nem virá, com a chuva toda que está caindo. Sem falar na neblina que parece ter tomado conta de todos os lugares. E o pior é que Olivia não tem opção nenhuma, além de ficar no ponto de ônibus esperando a chuva passar. É isso que ela odeia no inverno na serra. Tanto frio que fica completamente inviável sair de casa. Só que ainda assim, o Padre Henrique a obriga a fazer aulas de piano então, ela não tem opções.
Enquanto pensa, percebe que um gatinho só um pouco maior que um rato e completamente preto vem andando devagar pela rua e para, embaixo da proteção. Salta para o banco e se acomoda no colo de Olivia, sem pedir licença. Olívia entra na brincadeira e começa a acariciar o gatinho até que ele começa a ronronar.
- Você tá tão molhado. - Ela diz dando tapinhas na cabeça do gato. - E deve estar com frio com certeza. Você não tem coleira, seria um bom amigo. - Ela levanta o gatinho em sua frente e ele (ela) grunhe - Desculpe, uma boa amiga.
Olivia ri e coloca a gatinha sobre seu colo outra vez, acariciando seu pelo suave e a gatinha acaba dormindo. A chuva diminui e o céu se abre devagarzinho. Continua frio, mas Olivia tira seu casaco e enrola a gatinha que dorme e anda até a igreja pela rua molhada. Quando termina de andar os dois quilômetros, está com as bochechas vermelhas e tremendo de frio. Aperta a gatinha contra o peito e sobe as escadarias que ficam atrás do altar indo até seu quarto no sótão. A gatinha acorda e salta do colo dela, andando pelo quarto.
Olívia foi encontrada em frente à catedral da cidade quando era um bebê de colo. E pelos últimos 13 anos viveu lá, entre os padres e freiras da igreja ajudando na manutenção e na preparação das missas. Mas odeia isso. Só continua na igreja e ouvindo os padres porque não tem opção além de viver lá. Se as pessoas já não se aproximam dela por ser a "garotinha da igreja" imaginem como ela não seria tratada se fosse uma moradora de rua? Não, obrigada, prefiro ter um lugar pra dormir toda noite, é o que ela sempre diz quando pensa em ir embora.
- Certo. - Olívia diz baixinho. - Não faça barulho. Eles não podem saber que você está aqui, ok? - Então olha o relógio. Quase na hora da missa das 18h - Eu volto mais tarde com leite e alguma coisa pra servir de cama.
A gatinha solta um miado leve, como resposta. Olívia gira nos calcanhares e sai do quarto.

- Olíviaaaaaaaaaaa. - O som do nome dela ecoa pelas escadas e por toda igreja vazia, quando ela ajuda o Padre Moura a fechar as portas depois da missa das 18h.
- Vai lá, querida. - O padre mais gentil diz com um sorriso. - Não é bom deixar o Padre Henrique esperando.
Olívia corre até a lavanderia e pega os pijamas que deixou dobrado em cima da máquina e então corre até o quarto do padre.
- Que demora garota. - Padre Henrique exclama quando ela entra no quarto. - Parece surda.
Olivia coloca as roupas em cima da cama.
- Eu estava ajudando Padre Moura a fechar a igreja.
- Sempre. Sempre com Moura. Sempre ajudando a ele. - O padre rechonchudo, se inclina e pega a garota pelo rosto - Escuta aqui, Olivia. Fui eu quem peguei você naquela chuva e levei pra casa como se fosse um cachorrinho perdido qualquer. Eu cuidei e alimentei você, de outra forma, você estaria na rua agora. Então mostre seu respeito para comigo e não para com o Padre Moura.
Olívia se desvia dos dedos dele.
- Deus disse que nós devemos ajudar os necessitados padre, então o senhor não fez mais do que a sua obrigação.
O Padre solta uma risada sarcástica.
- Deus também disse pra nos mantermos puros e não para nos tornamos a vadiazinha de um dos homens que dedicaram a sua vida a Ele.
- É isso que o senhor diz para as mulheres que encontra do outro lado da ponte toda sexta-feira a noite, padre?
A bofetada leva Olívia até o outro canto do quarto e faz com que ela bata a cabeça contra o chão e corte a testa.
- RESPEITO NÃO SIGNIFICA NADA PRA VOCÊ, GAROTA? - O Padre diz a puxando pelo cabelo e atirando fora do quarto. - Sua boca ainda vai te matar, Olívia. Ainda vai te matar.
Então ele fecha a porta. Olívia se levanta e sai correndo. Ela sobe as escadas correndo e acaba indo até o terraço da igreja, quase caindo quando esbarra em uma das imagens que enfeitam o telhado da igreja. O choque a deixa sem ar e faz com que enormes gotas de lágrimas caiam de seus olhos.
Olívia sempre levava essas broncas do Padre Moura, mas nunca havia respondido, e ele nunca havia batido nela. Mas dessa vez foi preciso. Ele a havia chamado de vadia. Ela odiava essa palavra. Era assim que as crianças chamavam a mãe dela.
Desde que ela entrou na escola, todos diziam que a mãe dela era uma vadia. Uma vadia que dormiu com um dos padres e por isso a abandonou na igreja. Todos diziam. Mas Olívia não seria assim. Ela não era uma vadia. E ela não podia permitir que o Padre Moura a chamasse assim.
Olívia sente o sangue da testa escorrer pelo rosto até sua língua. O frio corta as suas bochechas quando ela se inclina sobre o parapeito e cospe. Espera que tenha atingido alguém. Silêncio. Uma névoa intensa toma conta do telhado agora. Então ela sente o liquido na boca outra vez e esfrega a testa, irritada.
- Tudo que eu queria era ir embora. - Ela diz pra si mesma, observando a cidade.
- Não é um salto tão alto daqui de cima.
A voz ao seu lado faz com que ela grite e caia sentada no chão. Não é de um dos padres. É uma voz feminina, doce, inocente. Quase infantil, mas com o quê de maturidade.
- Shiu! Não grite! Vai atrapalhar sua fuga, é isso que você quer?
Uma mãozinha pressiona a boca de Olívia a impedindo de falar. Ela está pronta pra morder a mão e sair correndo quando percebe a imagem que está em sua frente. A única definição que surge para ser comparada é a de um querubim. A minúscula criatura de longos cabelos castanhos cacheados e olhos incrivelmente verdes é o mais próximo possível de um anjo que ela já viu na vida. Ao ver o olhar de Olívia, a criaturinha sorri e solta seu rosto. Então pula no parapeito, se pendurando em uma das gárgulas e se balançando pra frente e pra trás.
- Meu nome é Kat. Katerina. - diz suavemente - E eu já fui você. Você acredita em você mesma, mas as pessoas não. Você nunca houve elogios, ou incentivo das pessoas que você admira. E você sempre pensa que é o lixo que eles dizem que você é.
- De onde você veio? - Olívia pergunta a observando com curiosidade.
- Você me atraiu até aqui... Até você. Só você me deu a chance de entrar.
- O que você quer dizer?
- Já ouviu falar que o pensar demais sobre alguma coisa atraí essa coisa pra você? - Kat se balança na gárgula, com um movimento delicado - Eu sou a sua liberdade, Olívia. Seu anjo da meia-noite. Sua salvação desse lugar frio e inóspito. - ela para e coloca o rosto bem em frente ao de Olívia - Mesmo que eu ache que você vai começar a preferir lugares frios e inóspitos, assim que a noite terminar.
Essa frase fez com que Olívia tivesse um mau pressentimento. Seus dedos automaticamente agarraram o crucifixo que os padres a obrigavam a usar. Kat solta a gárgula e salta do parapeito, colocando o rosto bem próximo do de Olívia.
- Qual foi a lenda que você ouviu? - sussurra encarando os olhos castanhos da garota - Vampyr? Strigoii? Chupa-cabra? Lobisomem? Ou você simplesmente leu Crepúsculo? O que a faz pensar que sou um vampiro, Olívia?
Olívia engole em seco. Então sua mão solta o crucifixo.
- O que você é?
Kat ignora a pergunta.
- Crucifixos não funcionam, de qualquer forma. É uma lenda. Está relacionado aos caçadores antigos de vampiros, que carregavam esse tipo de bugiganga. Então vampiros criaram uma repulsa automática a artefatos religiosos. De qualquer religião. Vampiros não possuem religião. Ou política. Ou sentimentos. Sabe o que isso significa? Sem dor, mágoas, medo ou insegurança...
-... Ou amor, ou paz, compaixão...
- ...Mas existe lealdade, conceito de comunidade, união de pessoas unidas pelo mesmo objetivo...
- ...Mas nada daquele sentimento intenso, que faz com que a gente sinta as pernas bambas ou sorria mesmo sem motivos pra isso.
- E você já se sentiu assim Olívia? - Kat rosna, tão próxima que Olívia finalmente consegue ver seus caninos brilhantes sobre a luz da lua.
- Você é uma vampira.
Kat sorri, sarcástica.
- Você é esperta.
Então se deita no chão gelado, ao lado de Olívia, que abraça as pernas contra o corpo.
- O que você quer de mim?
Kat desliza a língua pelos lábios, mas Olívia não vê isso.
- Você já teve uma amiga? - Kat pergunta de olhos fechados.
Uma leve névoa toma conta do terraço.
- Não.
- Então você entende porque essa necessidade de buscar alguém igual a mim.
- Vampiros não tem sentimentos. Não se sentem sozinhos.
- Tente passar 200 anos sozinha. Você vai ver que fica sem sentido em algum ponto. Fica vazio. Qual é o ponto de ter o mundo aos seus pés, se o mundo não sabe disso?
Gotas de chuva gigantes caem na cabeça de Olívia.
- E aonde eu entro nisso?
- Eu quero que você tenha sua liberdade. Sua vingança. Eu quero saber que fiz alguma diferença pra alguém além de mim. - Kat se senta e puxa o rosto de Olívia para sua direção - Eu tenho observado você há dias. Você é linda, esperta, corajosa e tem um coração doce. Isso não vai te levar a lugar nenhum. E essa noite isso ficou provado. Eu estava apenas esperando o momento certo. O momento em que ficasse complicado demais. E já está. É hora de ir embora Olívia. De liberar todo seu potencial.
- O que faz com que você pense que eu vou embora com alguém que eu mal conheço?
- Eu sou tudo que você sempre quis. Eu sou liberdade, independência, lealdade e amizade. Se não fosse para entrar de cabeça nisso você não deveria estar aqui esta noite.
Então Kat salta de volta ao parapeito. Olívia tenta considerar o que acabou de ouvir. Mas sente sua mente enevoada, e as gotas de chuva caindo na sua cabeça não ajudam muito. Apesar de uma parte dela desejar ir embora dali, todos os pensamentos dela giravam em torno dos olhos verdes de Kat. Então Olívia se levanta.
- Faça o que você tem que fazer.
A chuva aumenta. Kat sorri, mostrando os dentes pontudos e brilhantes. Então desliza o braço fino pelos dentes da gárgula, fazendo um corte grande, então mostra para Olivia.
- Você primeiro.
Olívia se afasta, observando todo aquele sangue que se mistura com a chuva e pinga no chão. Kat salta do parapeito e vai até ela.
- Você está com medo? Agora você está com medo? Você pareceu gostar de mim desde o inicio, porque você está com medo agora?
- Eu gosto, mas...
- Se existe alguma coisa em mim que a faça dizer "mas" você não gosta de mim.
- É assustador Kat.
- Eu estou aqui e eu não vou fazer nada que machuque você... - Ela faz uma longa pausa encarando os olhos da menina - A menos que seja necessário a sua liberdade.
- O que você vai fazer?
A expressão de Kat então se torna tomada de dor.
- Eu estou sangrando. - então mostra o braço - Você pode por favor?
Olívia se inclina e se aproxima do corte, com delicadeza. O sangue tem o mesmo cheiro acre e o mesmo sabor de metal que tanto dizem, mas é frio. Mais frio que a chuva, mais frio que a névoa. A próxima coisa da qual Olívia se lembra é Kat a empurrando gentilmente.
- Isso é mais do que suficiente. - Ela diz, respirando descompassadamente.
- Você ainda está sangrando. - Olívia diz tão em choque que não limpa o sangue escorrendo da sua boca.
- Tudo bem. Vai se fechar assim que eu terminar.
Então ela sorri, mostrando os caninos e se aproxima de Olívia afastando os cachos do caminho da jugular da garota. Olívia se afasta outra vez.
- Eu ainda não estou pronta.
- Você já fez a pior parte. Por favor, Olívia, me deixe terminar. Ou eu vou continuar sangrando.
- Kat..
Então alguém grita das escadas, subindo até o terraço, procurando por Olívia.
- É o Padre Moura. - Ela diz se levantando.
- Precisamos terminar antes que ele venha.
Olívia muda o olhar entre Kat e a porta, indecisa. O padre é o que ela sempre conheceu. Kat é liberdade.
- Não vai doer. Eu prometo. - Kat diz ansiosa.
Então Olívia assente. Fecha os olhos. Espera. Não consegue ver o sorriso de Kat. Se concentra no som da chuva. Sente duas agulhas perfurando sua pele. Implora pra que termine logo.
Kat finalmente tem o que queria durante toda a noite. O que enrolou para ter para aumentar a diversão. Se sente decepcionada. A essa altura a fome é tanta que o sangue de Olívia tem um sabor completamente comum. Ela foi muito difícil de convencer. As garotas católicas sempre são.
Ambas ouvem outra vez o grito na escada. É hora de terminar de vez. Kat está se sentindo forte. Olívia exausta. E então acabou. Kat salta para fora da igreja no exato momento em que o homem chega ao terraço, deixando apenas um corpo sem vida.
- Olívia?
Um corpo sem vida que acorda pronto para tomar a vida de qualquer um em seu caminho.


Bônus: As Crônicas de Kat - Introdução
Existem 3 formas de se criar um vampiro: batismo de sangue, associação com magia negra ou assombração. Eu fui forçada a nascer por magia negra.
Nasci em uma família que praticou magia por séculos. Eu tinha potencial. Era uma versão aprimorada de quem veio antes de mim. Eu queria mais que meus antepassados, tinha meus sonhos.
Mas mamãe tinha outros planos, desde antes que eu fosse concebida. Me usaria como uma ponte, uma chave para o outro lado. Correu atrás dos feitiços mais antigos até finalmente me transformar em um ser imortal.
Os demônios cobram demais de seres imortais. Eu fui transformada sob três ordens: multiplique, destrua e mantenha-se longe. Longe dos demônios, longe da magia. Você não é um de nós, é uma concessão que demos a um ser inferior, mas isso não faz de você especial, só mais uma entre os milhares de objetos utilizados para os próprios objetivos dos series superiores.
Ensinaram-me não tenho sentimentos e mal sentiria qualquer coisa além desse instinto de sobrevivência e de multiplicação. E eu acreditei. Por um período de tempo. Uma amiga me fez ver que existia mais além desses ensinamentos automáticos e me deu uma missão antes de morrer.
E se eu fosse contra os, assim chamados, "seres superiores"? Como isso seria? Mas eu não poderia fazer isso sozinha, precisava de um exército. E criei o meu. Meu Exército de garotas abandonadas, com medo, prontas para lutar contra qualquer forma de opressão e mostrar que são muito mais do que o que esperam delas. Transformei 13 vampiras de 7 nacionalidades diferentes. Eu sei que eles já sabem dos meus planos, mas eles realmente fazem ideia do poder? O que exatamente faz deles, realmente superiores, afinal de contas?