Nunca soube como fui parar lá fora, mas acordei no meio da floresta.
Respirar foi meu primeiro reflexo, mas fui atacada pelos meus próprios sentidos quando todos aqueles cheiros chegaram até mim. Um em especial se destacou e eu percebi que vinha da pequena trouxinha que se remexia loucamente embaixo de uma árvore, sem emitir um único som. A sede me atingiu tão rápido que antes que eu pudesse perceber...
- ELLIE, NÃO!
Congelei com a criatura já nos braços e os caninos a centímetros do rosto gordinho. Arregalei os olhos para a figura que aparecia por trás das árvores escuras.
- Kat?
Na escuridão completa, os contornos da pálida Kat pareciam os de um anjinho esculpido em mármore.
- Escute, eu sei que a sede é desnorteante agora, mas não mate o bebê.
Ela parecia angustiada ao dizer isso e isso era mais para se dizer que tudo que já vi em seu rosto. Só que a menção da palavra “bebê” me trouxe memórias e uma espécie de repulsa que me fez jogar a criaturinha no chão e deixar a palavra “monstro” escapar dos meus lábios.
Kat deu um salto e pegou o “bebê” no chão ninando-o.
- Não é culpa dele ter nascido como nasceu, e muito menos ser o que é. Ele pode crescer e ser o que você quiser que ele seja, Ellie. E ele é seu filho.
- Eu sinto desprezo por ele. – Rosnei, me sentindo com uma sede desesperadora. Por mais nojo que eu sentisse a medida que as lembranças chegavam, o cheiro do sangue do bebê estava me machucando.
- Não, não sente. – Kat nem piscou. Apenas continuou ninando a coisa como se fosse a mais preciosa do mundo – Desprezo é um sentimento, assim como ódio, medo ou qualquer coisa que pensa que sente. Você não sente mais. Isso são ecos, lembranças, sentidos confusos. Logo, logo isso vai acabar. – Então finalmente levantou os olhos verdes para mim – E pode começar com a aceitação do fato de que você deu a luz a uma das criaturas mais poderosas desse mundo, Ellie. Bebês meio demônios foram quase extintos. Ele é o primeiro nos últimos 400 anos.
Dei um passo para trás em sinal de recusa ao que ela dizia. Eu havia sido moldada para ver aquele bebê como a criatura que me matou, o ser que destruiu minha vida.
Os olhos de Kat se tornaram suplicantes.
- Eu preciso de você, Ellie. E você me conhece bem o suficiente para saber que eu não imploraria se não fosse realmente necessário.
Minhas lembranças sobre Kat me bombardearam com essa frase. Pensei no que ela disse sobre sentidos confusos e me concentrei no que Kat havia dito sobre não sentir... E de repente não havia medo. Ou dor. Ou até a mínima repulsa. Só sangue. E meu bebê fazia parte do meu.

As Crônicas de Kat:
Ellie

Os fatos registrados em As Crônicas de Kat foram retirados dos diários de Kat e das vampiras que transformou. O primeiro foi adquirido quando Kat completou 20 anos de transformação – descrito no diário como “meu aniversário de 30 anos” - quando ela achou que já era o momento de registrar as marcas que deixaria no mundo como muitos que ela foi forçada a estudar antes de ser transformada (e por isso algumas histórias são contadas em 2ª pessoa e não como simples relatos).
As informações sobre sua transformação traumática, e as viagens de Kat antes da formação do Exército serão acrescentadas durante a história. Algumas partes necessitaram ser completadas por narrações feitas após o acontecimento dos fatos. Outras foram organizadas em uma ordem que permite a melhor compreensão dos fatos pelo leitor.
O diário é o único lugar em que Kat foi completamente sincera sobre o que acontecia com ela, porém as anotações são muitas vezes vagas e infantis. Antes de hoje as únicas que conheciam essas histórias eram as vampiras do Exército.
Eu, Olivia Bittencourt, atesto que para todos os fins o que está escrito aqui é o relato mais fiel possível do que aconteceu de verdade.

Paris, França
10 de outubro de 1864
Diário de Ellie
Disseram-me que nunca houve tanta névoa em Paris desde o ano que eu nasci. Madame Pepot costumava dizer que é assim que os espíritos viajam. Até Mary sente algum tipo de presságio ruim sobre esse clima. Eu apenas o acho condizente com meu estado de espírito.
Hoje encontrei Alec pela primeira vez desde que seu noivado saiu nos jornais. Ele estava sorrindo, de braços dados com uma garota pequena e rechonchuda de olhos azuis e um longo cabelo dourado que o mercador chamou de Angélique. Nenhum dos dois me viu, mas não acho que me ver faria muita diferença.
Vê-lo fez toda a diferença para mim. Não acredito em mim mesma quando penso que, mesmo que por meio segundo, acreditei que nós pudéssemos dar certo. Porque ele se casaria com uma órfã? Sem futuro, sem passado, sem nome? Uma Pleurer!

Diário de Kat
Eu deveria saber que era apenas uma questão de tempo até que mamãe convocasse sua “arma indestrutível” e “fonte de poder que não podia ser comparada a nada que nossa família já tivesse tido nas mãos em milhares de anos”.
Era meu aniversário de 30 anos quando minha decrépita mãe me contatou de algum lugar entre a Rússia e a Eslováquia e me disse que eu tinha uma missão em Paris para “usar meus conhecimentos reparando a bagunça que seu tio Julian tem causado”.
O QUE ELA ACHA QUE EU SOU? UMA LIGAÇÃO DIRETA PARA O SUBMUNDO? Quando eu falei sobre não ser mais uma criatura controlável, ela listou delicadamente todas as formas possíveis de me matar se eu não continuasse fazendo tudo que ela precisa que eu faça. Ou seja, eu estou sob o controle dela para sempre.
Hoje é meu primeiro dia em Paris e eu já entendi tudo. Aparentemente, meu primo Alec era apaixonado por uma órfã e prometeu casamento assim que ela tivesse idade suficiente para mandar em si mesma. Porém, Julian com medo de perder ótimas chances de estender o poder do bom nome que criou, evocou um espírito qualquer para possuir o filho e dar fim em sua paixão.
Eu não entendo muito sobre o amor, mas entendo o instinto e as pessoas dessa família não deveriam ter algum tipo de instinto paternal? Quer dizer, vale mesmo a pena destruir a alma do seu próprio filho e substituir por um demônio qualquer simplesmente porque ele foi burro o suficiente para se apaixonar? Esse tipo de estupidez – e com estupidez eu quero dizer a paixão - acontece com uma frequência perturbadora.

11 de outubro
Diário de Ellie
Consegui um emprego! Irei substituir Mary!
Ela finalmente conseguiu o emprego de professora que tanto queria e pediu a Madame Pepot para me contratar para cuidar das crianças e, já que eu sempre fui muito boa com os mais novos, ela nem hesitou em aceitar.
Eu sei que tudo dá a impressão de que eu não quero seguir em frente e deixar o orfanato para trás, mas eu realmente preciso de um pouco de estabilidade antes de começar a viver de verdade.

Diário de Kat

Retirado de um jornal em Paris
O corpo de Claudette Gnoi foi encontrado essa manhã, banhado no próprio sangue e com feridas em diversas partes, em frente ao Orfanato Pepot. A família encontra-se desolada e traumatizada.  A polícia busca qualquer tipo de informação sobre pessoas vistas nos arredores na noite de ontem.

Só isso? 3 horas dedicadas a matar lentamente aquela pobre criatura e tudo que a morte ganha é uma nota de rodapé?
É, fui eu quem fiz isso. Corpos banhados em sangue são a minha nova assinatura psicopata. É como um toque de brilhantismo aos jantares da meia noite. Quando acham um corpo sem sangue deduzem que foi um vampiro, mas quando acham um corpo banhado em sangue acham que foi um maníaco sádico qualquer. Mas advinha só? Vampiros SÃO maníacos sádicos.

12 de outubro
Angélique é a pessoa mais entediante da face da terra. Fui forçada a passar horas com ela, agindo como humana e foi tão terrivelmente chato que eu nem tive forças para ficar imaginando como seria destroçar aquele pescoço gorducho (o que sempre faço para me distrair quando estou com humanos).
Eu sei que sangue é sangue, mas eu não estou faminta, muito pelo contrário, e mesmo que a vida de um vampiro se resuma em sangue nós gostamos de fazer da experiência a mais divertida possível. Prolongando nosso mortífero gozo, com o requinte de um gastrônomo e ampliando-o através das progressivas investidas de uma ardilosa abordagem.
Quero dizer se você estivesse com fome e pudesse escolher entre preparar um cozido de anchovas com cebola, alho e salsa e um peru assado recheado com passas, bacon e pedaços de maçã o que escolheria?
Voltando ao assunto, em algum ponto no meio da infinita conversa de Angélique sobre todo o bordado que ela teria que fazer para o enxoval de seu casamento, titio Julian chegou e me levou até sua sala para conversar.
Aparentemente, meu dever aqui é descobrir que tipo de demônio ele evocou para possuir Alec. De repente, só porque eu fui obrigada a me encontrar com alguns espíritos do baixo escalão, eu me tornei a especialista da família em Inferno.
Quando eu perguntei por que ele queria tanto assim saber qual o tipo de demônio se no final ele só mataria Alex e possuiria o próximo babaca que se atrevesse a invocá-lo, ele me contou que aparentemente o corpo de Alec teve uma reação... curiosa, ao ver sua antiga noiva.
O que significa que meu primeiro passo é conhecer a tal Eleanor. Ou melhor, Ellie.

16 de outubro
Diário de Ellie
Não consigo dormir, e sei do que é a culpa.
Por mais que eu acredite que ao colocar em um papel eu estou dando mais poder aos fatos do que deveria, sei que eu preciso registrar para que eu tenha certeza que aconteceu, sem a influência das histórias de terror de madame Pepot.
Há 4 dias uma garotinha (que afirma ter 14 anos, mas não parece ter mais de 10) apareceu ensanguentada e esfarrapada na porta do orfanato, pedindo abrigo. Seu nome é Katerina, mas logo fez com que todos a chamassem de Kat. Ela é uma criaturinha irritante e irritável com olhos verdes enormes e um rostinho que deixaria os anjos de qualquer afresco com inveja.
Eu arrumei um lugar no quarto das meninas, preparei um banho e comida, mas ela só aceitou o primeiro, depois se vestiu com roupas confortáveis que peguei emprestado de Eileen.
Como as mortes na Rue Saix estão aumentando de número todas as noites, Madame Pepot permite que eu vá para casa mais cedo, logo, hoje eu fui liberada as 16hrs.
Já estava me preparando para sair quando François, uma das crianças mais novas mais novas do orfanato, apareceu cambaleando pelo corredor com uma ferida no pescoço. Corri até ele e perguntei o que tinha acontecido, mas ele apenas ficou repetindo “um gatinho, um gatinho” e como parecia com febre imaginei que estivesse delirando. Voltei lá para cima, e dei um banho nele e o ajudei a pegar no sono. Então procurei por Kat por tudo o lugar para pedir que mantivesse o olho em François durante a noite, mas como não pude encontrá-la, deixei um bilhete pendurado na porta do quarto e rezei para que ficasse tudo bem.
Quando saí, já estava bem escuro, então redobrei a atenção. A rua estava deserta... Por isso quando o grito cortante soou, ele ecoou por cinco quarteirões. Assim como o silêncio aterrador que veio em seguida.
Eu sabia que não podia fazer muito pela pessoa e provavelmente só me colocaria em perigo, mas eu estava muito perto do orfanato para não me preocupar com o que aconteceria em seguida, então segui o eco do som e dei de cara com o pior cenário que poderia sonhar: um corpo estava jogando no chão em uma posição medonha.
Perfurações apareciam em todas as partes visíveis e o sangue escorria delas com tanta força que o som se assemelhava ao de uma torneira. O rosto estava desfigurado, com a língua para fora e cortada na metade, os olhos já estavam fora da órbita havia muito tempo, mas os dois buracos negros ainda tinham a expressão de pânico da morta.
Justo quando me perguntava que tipo de criatura infernal tinha feito aquilo, eu vi a bolinha completamente negra que se mexia em volta do corpo. O gatinho se esgueirava ao lado do corpo lambendo cada ferida habilidosamente e levando, a cada lambida uma bela quantidade de sangue.
Eu engoli em seco, e o som pareceu tão alto que chamou a atenção do gato para mim. Ele parou e levantou os olhos, verdes e brilhantes como folhas, parecendo me olhar diretamente e por meio segundo eu tive a impressão de que reconhecia aqueles olhos verdes de algum lugar... Então eu corri.
Ao chegar em casa, me joguei na cama e me cobri até a cabeça, com o coração aos pulos e implorando para que o sono acabasse com o que vi, mas não consegui pregar os olhos nem por um segundo o que me trouxe até este diário.

Diário de Kat
Incubus. O demônio sexual que toma a forma de um homem e ataca mulheres a noite.
É uma lenda interessante, mas mal interpretada. O íncubo toma o corpo de um homem (apenas homens belos, aliás) e não ataca só mulheres e não só adormecidas.
O demônio só usava o corpo das mulheres para reprodução. O bebês são meio humanos (na parte física) e meio demônios (na parte espiritual). Com aparência humana, mas imortais e com o poder igual aos do que a gente chama de “demônios do baixo escalão”, ou seja, aqueles que são mandados para terra em possessões. De qualquer forma, não existem bebês meio humano e meio demônios desde a idade média.
Eu só estou falando tudo isso porque foi esse o demônio que titio invocou acidentalmente. Dentre todos os demônios existentes no Inferno, ele invoca justo a espécie mais imprevisível e incontrolável. Se eu sentisse alguma coisa, eu quase sentiria pena de Angélique.
Tudo que eu precisei fazer para descobrir porque “Alec” reagiu ao ver Ellie, foi me aproximar dela um pouco. Assim que adquiriu confiança em mim, ela me contou tudo sobre o noivado, e eu descobri que eles já tinham se conhecido no sentido bíblico do termo. É óbvio que o íncubo iria se sentir atraído pela última parceira física do hospedeiro.
Agora nada disso importa, titio já sabe de tudo e meu trabalho está terminado. Ou quase. Eu iria embora de Paris hoje... Se não tivesse me deixado seduzir por Ellie.
Não no sentido sentimental da coisa toda, óbvio, mas tem algo de atraente na força, na coragem, na beleza e na história dela que me faz lembrar da primeira ordem: multiplique.
Ela daria a vampira perfeita, e eu tenho me divertido tanto criando a “rua de sangue", que acho que a única forma de ir embora de ir embora da cidade agora é deixando uma herdeira.

27 de outubro
Diário de Ellie
Duas outras crianças apareceram machucadas e delirantes hoje de manhã. E o total de mortes na Rue Sainx chegou a dezessete. Todas violentas e macabras como a que eu vi.
Essa tarde, eu e Kat estávamos no quintal do orfanato lavando toalhas sujas com o sangue das crianças. Kat esfregava cantarolando uma canção em uma língua romena e encarando a água vermelha com toda concentração do mundo.
A cena era encantadora. Fazia com que eu pensasse em crianças de uma Europa distante e desconhecida, usando roupas coloridas, brincando em uma floresta a beira de um riacho, enquanto uma garotinha pobre lava roupa imaginando quando pode se juntar a eles. Alguma coisa dentro de mim me fazia pensar que talvez a música falasse sobre isso.
- Onde você aprendeu essa música? – Perguntei, quando ela terminou.
Kat afundou a toalha que segurava na água e puxou de volta lentamente, e, segurando um suspiro, respondeu:
- Onde mais? Na Romênia.
- Você já esteve lá?
Mais uma vez ela terminou de lavar uma peça antes de responder.
- Eu já estive em toda Europa, Ellie. Em florestas escuras, em montes nevados, onde os sábios habitam e a comida é intragável. - Ela começou a torcer as roupas e as colocar em uma bacia. Iríamos usar as mesmas toalhas para diminuir as febres. - Conheço as pestes. – Ela disse depois de um tempo. Seus olhos pareciam sem foco, se lembrando de algo passado. – Conheço as bruxas. Sei de histórias que deixariam seus cabelos em pé. Vi coisas que se transformariam em seus piores pesadelos.
Naquele momento a imagem do gato me veio na cabeça. Os olhos dela eram os olhos do gato. Eu sabia que era ela.
- O que é você? – Deixei escapar entre dentes.
Então ela voltou a si.
- Como?
Fiquei tão em choque quando os olhos dela voltaram ao normal gigantesco e doce, que não consegui voltar a perguntar. Balancei a cabeça, e ela terminou de arrumar as tolhas.
Mais tarde perguntei como ela podia saber tanto sobre a Europa sendo tão jovem. Ela ergueu os olhos, deu de ombros e disse algo que soou como alemão então se virou e voltou para dentro do orfanato com a bacia nas mãos.

29 de outubro
Diário de Kat
“Laß sie ruhn, die Todten.” Deixe os mortos em paz.
Eu sei que Ellie sabe.
Eu vi a certeza em seu olhar quando eu falava sobre minhas viagens.
Não sei porque, mas não me importo que saiba e ela prefere ignorar o que sabe. Tudo que ela queria era uma amiga, e eu apareci me tornando isso. A órfã estrangeira, como ela. E é por isso que independente de que criatura assassina ela imagina que eu sou, ela não vai me denunciar. Ou fazer qualquer outra coisa que um humano normal faria.
Ah, Ellie... De todos os poemas alemães que eu li escondida quando criança, Lenore sempre foi meu preferido. Aquela que ama o morto e mantém nele sua fidelidade, com a morte compactua e à morte sucumbe, mesmo que tudo que tenha feito seja simplesmente amar.

31 de outubro
Diário de Ellie
Longa manhã arrumando os preparativos para a festa de Halloween. É claro que madame Pepot vai fazer seu discurso sobre os demônios de outubro para as crianças, que imploraram para que a tradição fosse seguida, mesmo com Mary fora do orfanato. Mas estou divagando. Nenhuma dessas coisas é mais importante para ser relatada do que o que aconteceu noite passada.
Kat foi embora... Começar por essa frase prova como minha cabeça está bagunçada e quão confusa estou. Ela não foi embora, apenas deixou o orfanato. Não podia mais ficar. Deus, porque não começo do início de uma vez por todas?
Ontem a noite eu já estava deitada, quando a camareira bateu à porta e disse que uma garota queria me ver. Eu me assustei com isso, mas pedi para que a deixasse entrar.
Era Kat. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e suas mãos... Cheias de sangue. Ela tinha matado alguém outra vez, mas pela primeira vez sentiu medo.
Quando eu pedi que explicasse tudo, ela me contou sua história: Sua mãe era uma bruxa que a transformou em vampira faz bastante tempo (ela não disse quanto). Não podia controlar seu instinto de matar pessoas. Não imaginou que tantas consequências pudessem vir do que havia feito. Ela estava tão confusa e tão perdida que nem percebeu que o sangue em suas mãos vinha de um corte, imenso acima dos pulsos.
Quando percebeu, o desespero dela pareceu aumentar e ganhar proporções gigantescas. Ela disse que se não tivesse sangue humano não poderia se curar! Não pensei duas vezes antes de oferecer o meu a ela, eu parecia naturalmente inclinada a isso, como se algo dentro de mim estivesse pedindo por isso.
Ela negou. Mas como continuou chorando, eu fiz antes dela, como fazemos com crianças no orfanato. Puxei seu pulso e me aproximei do sangue, achando-o menos repulsivo que geralmente acho.
Por meio segundo, um arrepio tomou conta de mim quando percebi o quanto o sangue dela era frio, mas me afastei com o susto e a sensação passou.
Então entreguei meu pulso para ela. E ela me mordeu. Foi mais doloroso do que podia imaginar, mas acabou rápido, pois ela jurou que não me machucaria de forma definitiva. Então disse que agora estávamos ligadas, para sempre, porque tínhamos trocado sangue. Nós duas nunca mais ficaríamos sozinhas.

Esse ponto é o último no diário de Ellie. Ela se sentiu tonta então e desmaiou, acordando apenas quando o despertador do quarto badalou o horário da festa de Halloween. Se quiser conhecer o trecho perdido da história, leia Haunted.

- Não importa o que acontecer, não ataque o bebê. Haverá consequências. – A frase fez com que Ellie voltasse a prestar atenção em mim. Ela apenas soltou um rosnado, então eu sorri – Você deve estar com sede. Vem, vamos ao vilarejo. É noite de festa.
Havia muitas coisas que eu não podia prever quando quis transformar Ellie. O demônio em Alec era a primeira. Os padrinhos imortais sabe-se-lá-de-espécie de Ellie a segunda. O nascimento de um bebê meio demônio, a terceira.
A criaturinha ressonava apertada contra mim então, com o coração aos pulos, mais rápido do que de qualquer humano. Ele tinha os olhos de Ellie, talvez um pouco mais escuros, e todo o resto de Alec. Mas ele não é filho de meu primo. Ele era o ser mais poderoso deste mundo.
Antes de me transformar minha mãe me fez ler diários, cartas e até ficção para que eu fosse muito poderosa do outro lado. Mas eu nunca seria tão poderosa quanto eles. Até que Ellie veio e mudou tudo.
- Precisamos de um nome. – Eu disse animada depois de um tempo.
Ellie parecia entediada, os olhos frios.
- Você escolhe.
- Tem que ser grande, importante, poderoso...
- Eu estou com sede, Kat. – Ela me interrompeu.
Nesse ponto, estávamos próximos da aldeia, onde uma festa acontecia.
- Vê isso? – Eu apontei na direção das pessoas – Todos da festa? São todos seus.
- Todos? – Ela arregalou os olhos, hesitando por trás da sede. Presa as lembranças de humanidade.
- Sim.
- Mas são muitos, Kat!
- E...? – Revirei os olhos - Eu sempre sou julgada por criar banhos de sangue. Um humano a mais, cento e sessenta e quatro a menos, que diferença faz?
Ellie ainda hesitava quando paramos no meio da festa.
- Ellie. Piedade é um sentimento.
Os olhos dela brilharam e ela finalmente entendeu o que eu quis dizer. No fim da noite, eu tinha Ellie, um bebê demônio, e uma cidade fantasma.
- Pierre. – Ellie disse, deitada no chão, vendo o sol nascer.
- Pierre?
- Um nome forte, importante, poderoso. O nome do primeiro homem que matei.
O bebê aceitou o nome com um gorgolejar suave.