“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente. É aquele que é mais adaptável à mudança.”
Leon C. Megginson

As Crônicas de Kat:
Afterworlds

Bucareste, Romênia
7 de outubro de 2016
Sophie
Minhas mãos apertam o peitoril da janela com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos. Elas suportam todo meu peso quando eu me inclino para frente, sentindo o vento contra meu cabelo e o cheiro do orvalho. Se os céus estão chorando, eu não preciso chorar. Se a natureza continua se movendo, dia após dia, noite após noite, eu também posso.
Por isso escolhemos o nascer do sol.
– Sophie? – Ouço a voz de Kat pela porta aberta – Estamos prontas.
Me afasto da janela e olho para Kat, cuja energia toma meu quarto inteiro. Kat parece ter crescido depois que tomou sua alma de volta, se expandido. Mesmo agora, usando preto pela primeira vez desde que a conheço, com o cabelo preso em uma coroa de tranças igual à que eu uso, ela não se mostra menor. Ela emana poder.
Pego a pequena urna que parece pesar uma tonelada sobre a minha mesa, e sigo Kat para fora de casa. Lá fora, as outras seis restantes do Exército nos esperam. Persephone, Pierre, Alexandra e Rowan queriam vir prestar suas homenagens também, mas um não de Kat foi o bastante. Este funeral é nosso. É daquelas que compartilhavam do sangue das que se foram. Daquelas que lutaram ao seu lado.
Minhas mãos tremem e a urna se balança enquanto eu ando, fazendo a pequena pedra de lápis lazuli balançar de um lado para o outro. Apenas duas urnas carregam os restos mortais de suas donas: A de Louise, que Juliana carrega contra o peito e a de Valentina, que Anika afasta do rosto para não deixar molhar. As de Charlottie – que está comigo – e de Miranda – com Ellie – estão vazias, apenas com as suas pedras. Nós nos desfizemos de seus restos mortais antes de pensar em um funeral. Antes que a maior parte do Exército pudesse sentir o luto em sua forma mais profunda. Naomi não tem uma urna, não porque não sintamos sua falta, mas porque Kat está convencida de que ela não morreu.
Foi-se a época de caminhadas silenciosas e soturnas no Exército. Agora caminhamos em meio a lamentos e gemidos. A cada cinco passos, alguém para, tremendo de frio e esfrega os braços antes de voltar a caminhar. Frio é comum quando seu corpo é mais quente e vivo do que a de humano comum.
Andamos pela parte desmatada e vazia da estrada até o começo da floresta, onde costumávamos vir para treinar. Uma árvore antiga, um salgueiro bem cuidado, possui quatro buracos próximos à sua raiz, ao lado de pequenos montinhos de terra. Paramos ali, o mais próximo umas das outras que pudemos, sem formação definida. Não parecemos um Exército ou um Clã. Parecemos um bando de freiras, ou talvez um bando de bruxas. Oito jovens vestidas de preto com o cabelo preso em uma coroa de tranças, olhos lacrimosos e almas cansadas. O sol está começando a despontar do céu, uma linha branca em meio à imensidão escura e os olhos de Kat têm a cor do salgueiro quando ela dá um passo à frente e diz, de alguma forma olhando para todas nós ao mesmo tempo:
– Ainda não acabou. Sei que pode ser fraco. Sei que algo acabou naquela noite, mas... Ainda não acabou. Não acabou para nós, não acabou para elas. Tudo que nós conseguimos foi conquistado pelo sangue derramado, por nós e por elas. Nós somos muito mais do que o corpo que habitamos e mesmo que muitas vezes desejemos mantê-lo eterno e habitar nele para sempre, mesmo quando ele vai embora, nós continuamos. Infinitos. Nossas marcas continuam na manta do Tempo, nossas almas estrelas brilhantes do Céu, nosso bem constantemente vencendo o Inferno, nossa persistência negando direitos à Morte.
“Miranda. Valentina. Charlottie. Louise. Sentimos falta de vocês, mais do que palavras poderiam descrever. Vocês foram irmãs, amigas e mais que tudo, guerreiras. Não estaríamos aqui sem vocês e isso é algo que nunca vamos esquecer, não importa quanto tempo continuemos aqui. Cada uma das centenas de almas salvas na guerra carrega uma parte de vocês agora. Não é o fim para vocês. Especialmente não até que eu dê paz a todas vocês...”
– Kat. – Ellie geme, ao meu lado.
A interrupção é tão repentina que faz com que a urna trema na minha mão com mais força. Kat ignora a reprimenda de Ellie e toma a urna das minhas mãos com um sorriso compreensível. Não consigo controlar mais as lágrimas ou os temores. Eles saem de mim em uma torrente, respingando magia. Kaylee, Olívia e Tatiana de repente estão em torno de mim, me abraçando com força. Apenas Kaylee tem a minha altura e abraça meu pescoço, então a cabeça de Olívia fica pressionada contra a minha barriga e o nariz de Tatiana pressionado contra meu ombro direito. Retribuo o abraço de Olívia, a esmagando contra minhas costelas. Estou tentando controlar algo dentro de mim ao fazer isso, uma espece de energia que vem de perto do coração e parece tomar meu corpo.
Existe algo de diferente nessa ação, nesse abraço compartilhado em lágrimas ao invés de palavras. Olívia tenta controlar a própria respiração, para que eu controle a minha, Kaylee mede minha pulsação para se distrair e Tatiana me aquece, no dia mais frio desde que voltamos da Antártica. É puro, inocente e mágico. O percebo como algo que nunca tive, algo que nenhuma de nós conheceu. E em meio a tremores dolorosos e a sensação de que nunca vou me adaptar à saudade de Charlottie, eu me dou conta de que essa conexão de almas é muito mais forte que qualquer conexão que tínhamos antes, de sangue.
Quando me controlo o suficiente para que voltemos à solenidade, o céu já está tomado por um cinza pálido, que só vai amarelar com mais alguns minutos. Me afasto do abraço com carinho e tiro, do rosto molhado, mechas que caíram da trança antes de pegar a urna de volta com Kat.
– Você quer dizer alguma coisa? – Nossa líder pergunta, me entregando a caixinha.
Nego com a cabeça. Juliana, Anika e Ellie fazem o mesmo. Estamos todas com o maxilar cerrado e os rostos molhados de lágrimas. Juliana é a primeira a colocar a urna de Louise no lugar. Logo após fazer isso, corta sua mão na árvore e deixa cair gotinhas de sangue caírem sobre a urna antes de cobrir o buraco. Isso não foi combinado, mas percebo que faz sentido. As outras três de nós fazemos a mesma coisa.
Não sei porque sou a última. Talvez porque já tivesse feito isso antes. Já enterrei o corpo inexistente de Charlottie, já me enlutei por sua perda. Daquela vez, eu sabia que ela continuava a existir em algum lugar, talvez diferente do que eu conhecia, mas viva. Dessa vez é diferente? Eu não pude vê-la no Inferno. Quem pode disse que ela seguiu Valentina para fora, pela ruptura, e então... O quê?
Eu só percebo que estou sangrando sobre a urna há tempo demais quando Ellie toca meu ombro. Me afasto com um sobressalto e Ellie me abraça com firmeza. Não choro em seus ombros, esgotada pelo que já chorei, mas ela chora nos meus e eu permito. Ellie foi minha irmã mais velha por muito tempo e continua sendo. Ela entende minha dor. Eu entendo a sua.
Kat cobre a pequena cova de Charlottie, ela mesma chorando. Antes de dar um fim a tudo, nos reunimos em formação, olhamos uma para as outras e tocamos nossas pedras. As cinco bruxas lançam um pequeno feitiço protetor sobre as outras, um que mães lançam as suas filhas antes de deixar que elas se aventurem pelo mundo. Minha mãe nunca lançou ele sobre mim. Charlottie lançava todos os dias.
O momento se quebra com Kat limpando o rosto e nos viramos ao mesmo tempo para ir embora para casa, sem olhar para trás. À nossa frente e acima de nós o céu está em um lindo tom de dourado e com um pequeno salto de exasperação, Olívia faz com que olhemos para cima. Um lindo arco-íris está sobre nossas cabeças, mas em vez de sete cores, ele possui três tons de rosa e um azul diamante.

13 de outubro
Katerina
Uma esfera de água explode acima da minha cabeça encharcando minha blusa e transformando em lama as manchas de poeira em minha calça.
– Isso foi longe demais. – Grito, lançando feitiços imediatos que faz a terra sob os pés de Anika tremer e Juliana tropeçar no ar.
Quando Anika também cai, eu vejo uma ferida violenta se abrir em seu joelho. Me aproximo para ajudá-la a ficar de pé e ela geme quando o osso volta para o lugar.
– Não. Isso foi longe demais. – Anika reclama, segurando em minha mão.  – Como você fez isso?
– Uma boa bruxa nunca conta seus segredos. – Eu digo, zombando, mas em seguida dou de ombros. – Eu aprendi qualquer feitiço relacionado ao ambiente aos três anos. Não me lembro como faço, apenas faço.
– Exibida. – Juliana resmunga.
Sorrio para as duas e me viro quando ouço os passos de Ellie e Sophie.
– Se vocês três já terminaram de brincar de “Quem é a bruxa mais poderosa?”, Persephone está aqui para falar com Anika. – Ellie diz, sorrindo.
– Era isso que vocês estavam fazendo? – Sophie pergunta, erguendo a sobrancelha. – Isso explica porque não me convidaram, seria perder de propósito.
Reviro os olhos e olho em volta.
– Eu só preciso chamar Kaylee e voltaremos. – Eu digo.
– Kaylee voltou para casa há quase vinte minutos. – Ellie me interrompe.
Estou na ponta dos pés e paro no ar. É claro que ela fez isso e fez de forma que eu sequer percebesse. Tem sido impossível manter Kaylee fora de casa, mesmo que o que tem feito com que ela se sinta tão mal esteja dentro da casa.
Saímos da floresta em grupo e vamos para a casa em silêncio. Eu me pego observando a energia das meninas apenas por costume. Desde que voltei a ser bruxa eu nunca estou não fazendo um feitiço. Tantos sentimentos e sensações, tantos pensamentos perdidos. A dor dentro delas que não vai embora nunca me machuca, mas eu estou aprendendo que às vezes não é possível fazer nada pelo que os outros sentem. Ou pelo que a gente mesmo sente.
– Bom dia, prima. – Persephone diz, quando vê Anika entrar primeiro. – Bom dia, meninas. – Completa, para nós.
– Bom dia, tatarasobrinha. – Anika corrige, com um sorriso de lado. – Más notícias?
Me atiro no sofá e Juliana faz o mesmo. Ellie vai para a cozinha e Sophie se senta no balcão. Persephone e Anika estão de pé no meio da sala, conversando animadamente. Eu vejo a semelhança entre elas melhor desde que Anika recebeu a alma de volta. Quando penso nisso, Selene aparece, saindo do banheiro.
– Nós vamos voltar para Piatra Neamnţ! – A doppelganger exclama, antes que sua irmã possa fazer – Agora para sempre!
Persephone suspira. Não é a forma como ela contaria a notícia.
– Sério? Vocês vão vender a casa? – Anika pergunta.
– Não. – Persephone discorda. – A sala de estudos torna isso impossível. Nós a demos de presente para Rowan. Era a casa do irmão delas, afinal de contas.
– Espera. – Anika diz, demorando a se dar conta do que está acontecendo. – Rowan não pode sair da casa do oráculo. Ou de Piatra.
Persephone respira fundo.
– Você quer se sentar? – Pede.
– Não. – Anika reclama.
– Anika...
– Diga o que você tem a dizer.
Eu percebo antes mesmo que Persephone diga:
– Rowan não é mais o oráculo. Não é mais a vidente mais poderosa de sua linhagem. E eu perdi todos os meus direitos de nascimento.
– Você não pode estar dizendo...? – Anika mesma se interrompe. – Eu nunca sequer tive uma visão.
– Porque você não quis. – Eu digo, antes que possa me impedir. – Você tem bloqueado suas previsões, Anika.
– Kat, eu não posso assumir o lugar de Rowan. – Anika afirma.
– As duas linhagens estão chamando por você. – Persephone diz, implorando com o olhar. – Bruxas e videntes, todas de Piatra Neamnţ, querem você lá. Para liderar e para cuidar. E eu sei que você quer isso também. Sei que sabe que seu coração e alma pertencem àquela cidade.
– Não é justo. – Annie insiste.
– É seu Destino. – É Selene quem diz. Ela está escondida na saia de Persephone, mas estica a mão para Anika delicadamente. Anika a aceita e olha para a sua cópia com carinho.
A cena é estranha, para dizer o mínimo. Há algumas semanas Selene tinha medo de Anika como tinha medo de pouquíssimas coisas. Agora, olha para ela como olha a irmã. As pessoas realmente dizem que crianças conhecem energias. Criança bruxas, então...
– Eu ainda poderia recusar... – Anika sussurra.
– Antes da primeira das três luas sangrentas. – Persephone avisa.
– Isso é amanhã! – Anika reclama. – Por que você não me disse nada antes?
– Porque eu sei que você não vai recusar. – Persephone responde. – Você é A Princesa, Anika. Pare de lutar contra isso e assuma o que é seu. Você foi para o Inferno literal. Você merece.
Anika se vira para mim e me olha como se quisesse que eu impedisse tudo. Sustento o olhar e não digo nada. A guerra foi em nome da liberdade de minhas meninas. Não importa se elas escolhem passar ela perto ou longe de mim.
Só tiro os olhos dos dela quando ouço a voz de Pierre me chamar. Ele surgiu pela porta da cozinha e agora me chama para conversar. Ao meu lado, Juliana acerta a postura e sorri para ele. Quando percebe que eu estou olhando, foca no forro descosturado do sofá. Eu sorrio.
– Certeza que é comigo que você deseja falar? – Pergunto.
Pierre aperta os olhos, não achando engraçado.
– Sim. – Responde. – Podemos conversar a sós?
Com um suspiro, o sigo até o andar de cima. A família no meio da sala agora conversa mais baixo e Juliana se levanta, indo para a cozinha.
O quarto de Pierre está um caos. Não sei porque me surpreendo. Parece natural que o quarto de verdade dele fique desse jeito, depois de mais de cem anos vivendo como nômade ou prisioneiro. Me sento em sua cama com cuidado para não sentar sobre nada e fico olhando enquanto ele anda pelo quarto, falando:
– Me ajude a entender: Qual o meu papel nisso tudo? A última vez em que fiz algo pela guerra, foi quase dezenove anos atrás, quando fui o portal do demônio que amaldiçoou Ellie. Eu tenho seguido vocês por todo esse tempo como o maldito prisioneiro, pensando que ao menos seria morto na guerra, mas a batalha final já foi ao fim e aqui eu estou. Vivo e respirando. Completamente inútil.
– Se você quer morrer, eu conheço algumas pessoas que compartilham do desejo. – É minha resposta.
Pierre me lança um olhar cortante e revira os olhos quando eu sorrio.
– Kat. Eu falo sério. – Insiste.
– Você já pensou que talvez você não seja parte da guerra? – Eu digo. – Que talvez você seja apenas um bebê nascido no meio dela que deu a sorte de não precisar fazer parte dela?
– Eu fiz parte dela. – Pierre lembra. – Esqueceu que eu recebi a missão de matar Ellie? E de fazer com que Tatiana nascesse? Mas eu pensei que houvesse algo mais. Algo meu a ser feito.
– Algo que você pudesse fazer para nos ajudar e não apenas ser um joguete no Inferno. – Eu completo, pensando.
Pierre suspira e se senta no meu lado na cama.
– Eu queria acreditar que sou mais seu do que do Inferno. – Ele diz.
– Pierre, você não é meu. – Respondo. – Ninguém mais é meu. E não é do Inferno também, é apenas seu.
Ele se concentra na parte que não deveria:
– Você realmente acredita nisso? – Pergunta. – Nem Ellie?
Pierre.
– Você não vai conseguir escapar dos sentimentos dela para sempre, Kat. – Pierre avisa.
– E você? Vai conseguir fugir dos de Juliana? – Rebato.
O rosto de Pierre escurece e a mandíbula trava.
– Ela sequer pode me tocar.
Sorrio e dou um tapa em seu braço com a mão dentro do casaco.
– Depois de todas as coisas impossíveis que nós fizemos, isso vai ser fácil de resolver. – Digo, o consolando. – Eu só fico feliz de você ter superado a quedinha que tinha em mim.
– Você sabia disso? – Pierre pergunta.
– Eu não nasci ontem. – Dou de ombros, e com um suspiro, completo: – E eu sei que não posso fugir dos sentimentos de Ellie, só queria uma forma de entender os meus.
Pierre se surpreende.
– Não é mútuo?
– Eu não sei. – Respondo com sinceridade. – Eu não senti por quase duzentos anos, como eu vou entender tudo que estou sentindo em duas semanas?
Pierre se cala e nós dois ficamos em silêncio no quarto escuro e bagunçado. Eu não tinha me dado conta de que Pierre é a segunda pessoa que me conhece há mais tempo. Ele cresceu me conhecendo. Nossos silêncios fazem quase tanto sentido quanto meus silêncios com Ellie.
– Você acha que algum de nós merece um final feliz? – Pergunto, como só faria com ele. – Matamos tantas pessoas, fizéssemos tantas coisas horríveis.
– Katerina, não existem finais felizes para criaturas eternas, porque não existem finais. – Pierre recita. – Quem sabe o que vai acontecer amanhã? Ou daqui a cem anos?
– O Destino.
– E você aprendeu sua lição sobre descobrir o que ele sabe.
Sorrio. Eu queria abraçar Pierre, mas prefiro não fazer com que ele combusta, então simplesmente digo:
– Sabe como eu sei que você faz parte do Exército? Que é mais nosso do que deles, como você diz? – Pierre olha para mim. Seus olhos são azuis, mas de alguma forma são olhos Petry. Sempre esqueço que ele também tem meu sangue. Continuo: – Você escolheu ficar. Sei que você sabe que poderia ir embora, mas está aqui. Preocupado sobre não merecer seu lugar aqui. A vitória é tão sua quanto nossa, Pierre.
– Eu sempre vou ser um demônio, Kat. – Pierre diz, derrotado. – Vocês não estão mais no Inferno, mas eu estou.
– Você é humano também. E como humano tem o único poder que foi concedido a eles: livre-arbítrio. Use-o com sabedoria.

Piatra Neamţ, Romênia
15 de outubro
Anika
Coloco as mãos sobre a porta de madeira, como se a conhecesse. Como se pudesse pedir que ela me dissesse o que está acontecendo lá dentro e pedir que abrisse diante de mim e ela fizesse isso de bom grado. Claro que eu poderia fazer isso, mas não quero, não ainda.
Olívia toca meu ombro e Selene aperta meu braço, uma de cada lado, impacientes. Fecho os olhos para não ver seus pedidos.
A primeira lua sangrenta veio e foi embora e eu não fiz nada. Fiquei da minha cama, a observando com os olhos bem abertos, durante toda a noite. Quando ela saiu do meu campo de visão, me levantei e fui para a sala, acompanhada por um fantasma conhecido. Continuei a observando da sala, com a janela aberta e o vento de outono me fazendo tremer. Não tirei os olhos dela e em cada segundo que passava, eu sabia que poderia fazer. Poderia recusar meus direitos e validar a linhagem de Persephone e de Selene. Podia fazer de Selene a garota da previsão de Persephone. Mas não fiz.
Quando o sol começou a despontar no céu, eu deixei que o Destino falasse comigo e me permitir ter minha primeira previsão. Quando o dia ficou claro, eu já tinha empacotado tudo que precisava de importante e estava na sala da casa, diante do Exército, implorando para que fossem comigo. Algumas das meninas queriam ir, mas Kat disse que não. Eu não precisava de um Exército para conhecer minha família. Elas iriam apenas quando eu estivesse pronta. Repeti o pedido e apenas Olívia aceitou e foi autorizada a vir.
Rowan nos trouxe em um dos carros de Persephone, já que a dona dele nunca aprendeu a dirigir e não acha lógico fazer isso em seus últimos três meses de consciência. Eu disse ao antigo oráculo que não queria sua casa, e que ela podia fazer o que quisesse com ela. Rowan se mudou para Bucareste para estudar, começará um curso na faculdade. Disse que estaria pronta para me ensinar o que eu precisasse em minha nova função. Eu podia ver uma tranquilidade dela, a leveza de ter sido libertada de sua sina, de seu Destino maior. Algo que Persephone nunca teria. E nem eu.
Me instalei em um hotel no centro e por onde passava, bruxas me saudavam e sorriam. Antes que eu pudesse tomar um banho e planejar minha vida, uma mensagem chegou: O conselho de bruxas esperava por mim. As bruxas e as videntes mais importantes da cidade me aguardavam num salão no subsolo do museu. Ou como Sophie me descreveu quando veio até aqui para pedir às bruxas que nos deixassem ficar, um centro de convenções para uma família tão antiga quanto a própria cidade.
Minhas mãos pressionam a madeira com mais força. É de uma árvore de tramazeira, madeira vermelha. Sábias são as videntes que se cercam de tramazeiras. Bem-aventuradas aquelas que temem o Destino. Malditas aquelas que tentam ser mais inteligentes que ele.
É a hora. Eu toco a ametista sobre meu peito e sinto lágrimas se formarem em meus olhos. Eu preciso de um Exército, sim, Kat. Preciso do meu Exército. O meu clã de verdade.
Um cristal de lágrima escorre por minha bochecha quando eu abro a porta. Cada vidente, bruxa, humano ou qualquer outra criatura lá dentro se levanta e me segue com os olhos. Eu devo parecer uma bela figura principesca neste momento, com a ferocidade de uma vampira e o rosto lacrimoso de uma alma amaldiçoada. Pergunto a mim mesma porque estou fazendo isso, se é o que eu realmente quero. Por que eu estive tão perto de vencer o Destino e não o fiz?
Caminho até o púlpito, o altar erguido para Deus sabe quem. Olívia e Selene estão em meu encalço, como minhas damas de companhia. Como se uma lembrança repentina tomasse conta do meu ser, eu ajeito a postura, ergo a cabeça e direciono meu olhar a todos e a ninguém ao mesmo tempo. Olho para elas, as bruxas e videntes, todas minhas irmãs de sangue e completas desconhecidas como se jurasse todos os juramentos de vassalaria.
Eu não me lembro muito bem de minha primeira melhor amiga, a arquiduquesa Marie Valerie da Áustria. Mas me lembro dos gritos de sua mãe para que eu e ela nos portássemos, de suas longas sessões de embelezamento, da importância que colocava em sua coroa. Eu não sou nenhuma Imperatriz Sissi. Da mesma forma que nunca fui Kat, Ellie ou Deyah. Se, apesar disso, elas querem que eu seja sua líder e princesa, o mínimo que posso fazer é aceitar o papel com humildade.

Nova Orleans, Estados Unidos
19 de outubro
Juliana
Adele Mayfair espera por nós. Ela não é burra. Quando sua filha mais nova foi sequestrada do hospital de fachada em Paris, ela sabia que apenas sua filha mais velha poderia ter feito. Quando, meses depois, a antiga casa dos Delacrois foi comprada por uma benfeitora misteriosa e a notícia circulou na alta sociedade da Louisiana, ela sabia que apenas uma família teria interesse em adquirir a casa legalmente.
Ela sabia que eu vinha e sabia que traria um Exército comigo. Por isso, quando uso a chave de Amelie para entrar na antiga sede dos Apreciadores da Arte do Sangue, eu não faço pelo elemento da surpresa. Estou apenas indo direto ao ponto.
– Parece vazio, mas preciso que vocês chequem. Se alguém estiver aqui, não deixem sair. Vou encontrá-la no andar de cima. – Anuncio.
Kat e Pierre concordam com um aceno. Tatiana hesita, ela é a pessoa mais fácil de se machucar entre nós quatro, a menos que fogo esteja envolvido. Digo a ela que nada de ruim vai acontecer, mas em silêncio me sinto grata por ter distraído Alex e evitado que ela viesse hoje. Ela não precisava estar aqui. Se depender de mim, ela nunca mais verá nenhuma das pessoas que a machucaram.
Ando pelos corredores e pela escada luxuosa com os olhos bem abertos e observando tudo, mas poderia fazer o caminho de olhos fechados – meu sangue me guia até minha mãe, pulsando em minhas veias e me lembrando que eu vim dela e a ela precisava retornar.
Passo pelo antigo salão de reuniões e percebo que em nenhuma das vezes que vim até aqui, esta casa esteve tão quieta. Me lembro da última vez que estive aqui, a noite de nossa festa de despedida, em que Pierre invadiu a casa, completamente bêbado. Lembro de pensar que nunca mais poderia voltar a Nova Orleans e querer beijá-lo por me possibilitar isso. Parece uma outra vida, tempo demais atrás. Tudo mudou na noite da batalha final. Exceto por alguns desejos.
Abro a porta da sala em que sei que minha mãe está sem cerimônias, mas fico parada na soleira observando o lado de dentro. A luz clara do meio da tarde entra por cortinas marrons, deixando a sala – decorada como a sala de estar de muitas das casas em que servi: móveis caros, chaise longues de couro e ouro, prateleiras tomadas de souvenires do mundo inteiro e cristaleiras cheias de baixelas antigas – em um tom de bege. Tão bege quanto o resto da sala é a imagem da mulher parada de costas para a porta, de frente para uma das janelas.
Quando a porta é aberta, uma força sobrenatural vira minha mãe para mim. Ela está vestida em um roupão de seda, como se tivesse acabado de acordar. Os cabelos cacheados e volumosos com pouquíssimos fios acinzentados estão derramados sobre seu colo, delicadamente organizados. Na mão direita cheia de anéis um copo pela metade de conhaque se pendura. Meu coração se afunda quando eu percebo o quanto pareço com ela.
– Você parece um fantasma. – Ela diz, andando até a mesa mais próxima para depositar seu copo.
– Não é a primeira vez que ouço isso. – É a minha resposta.
Ela vem até mim. Eu ainda estou na soleira da porta, sem querer entrar. Esta sala me traz lembranças estranhas, coisas que eu não entendo.
– Você está usando as joias dos Delacrois. – Ela diz, estendendo a mão para segurar meu brinco.
Dou um passo para trás.
– Eu sou uma Delacrois. – O sorriso reluzente que minha mãe abre, satisfeita consigo mesma como nunca esteve, me faz acrescentar: – Eu quis dizer que sou herdeira de Louise.
– Ela se foi. – Adele acrescenta, exasperada.
– Não aja como se você não soubesse exatamente o que aconteceu na guerra. – Digo, uma ameaça no olhar. – Se você tem poder o suficiente no Inferno para controlar um parasita, o tem para saber sobre a guerra.
– Não fale assim com sua mãe. – Adele ordena.
– Eu não estou aqui para falar com a minha mãe. – Eu respondo, a desafiando com tudo que tenho. – Estou aqui para falar com a criadora dos Apreciadores da Arte do Sangue e a responsável pela morte de duas das minhas irmãs.
– Alexandra morreu? – Adele pergunta.
De alguma forma ela parece menos afetada por isso, do que fingiu ser pela morte de Louise. Me forço a balançar a cabeça, negando.
– Estou falando de Charlottie, a garota que o demônio no corpo de Alexandra matou. – Explico. – E de Louise. O sangue dela também está nas suas mãos e você sabe disso.
– Você não pode me culpar por cada coisa ruim que aconteceu na sua vida, Juliana. – Adele zomba. – Você é mais madura que isso.
Explodo. Não controlo a intensidade da minha raiva quando coloco fogo na manga de seu roupão. Seus gritos tomam meus ouvidos como se fossem o ruído branco de uma televisão, eu não estou consciente do horror neles. Um chamado pelo meu nome me atravessa, mas eu não me movo, deixo ela queimar. De repente eu sinto a mão de Pierre sobre meu braço. Ele não me toca desde que recebi minha alma de volta justamente porque suas mãos queimam, como estão fazendo agora. Levanto os olhos para ele enquanto Kat extingue o fogo em minha mãe.
Os olhos de Pierre estão profundos e intensos nos meus e suas mãos se fecha com mais força contra meu pulso. O cheiro de carne queimada toma conta da sala e eu não sei se ela vem de Pierre ou de minha mãe. Quando Tatiana chega até a comoção, Pierre limpa a garganta e eu tiro meu pulso de suas mãos com violência.
– Não faça isso. – Sibilo para Pierre.
Volto a olhar para minha mãe. Ela parece tão fraca agora, machucada e queimada. Vejo menos dela em mim e gosto disso, não me arrependo de queimá-la. Sinto tanta raiva dela. Não fosse por ela Alex não teria sofrido tanto, Charlottie não teria morrido e Louise...
Malditos sejam dos Frutos de seu Poder. Louise pensou que sabia o suficiente para tirar o parasita de Alex e fez todo tipo de encantamento que conhecia. Ficou pior, muito pior. A doença se multiplicou e a alma de Alex tem feridas abertas por isso. Não vai poder ser salva quando ela morrer a menos que eu faça algo antes.
Indignos sejam os que Condenam quem Fez. Tivemos longas brigas sobre isso, discussões complicadas causadas por raiva e ciúmes. Ninguém sabe disso. Nem Alex. E é por isso que eu me sinto tão culpada e indigna de ter recebido seus poderes e sua herança.
Da Noite se veste e A Noite se Torna. Louise foi a primeira a chegar ao Inferno. Quando chegou, uma horda de sombras nos esperava e ela foi a primeira atacada. Graças ao tratamento de Alex, ela conhecia os pontos fracos das sombras, dos demônios de segunda categoria. Ela concentrou toda sua energia em impedir essas almas, ao invés de fugir. Ela precisou abrir mão de sua energia pela nossa, abrir mão de sua consciência e, finalmente, de sua alma. Era isso que ser a Árvore significava: Uma fonte de vida, de alimento e poder, e algo tão facilmente destruído com fogo.
Louise foi a única de nós que se sacrificou por completo e cuja alma não pode ser salva, por não existir mais. Se ela não soubesse o que fazer, talvez todas estivéssemos mortas agora. Ou talvez, como aconteceu no último ataque do Clã Romeno, nós saíssemos quase ilesas e todas vivas. E mesmo que isso tudo tivesse sido previsto anos atrás, eu não me importo com os designíos do Destino. Eu me importo com culpados mais imediatos.
– Por que você fez tudo isso? – Pergunto, me abaixando para olhar minha mãe, que está sentada no chão, chorando de dor. – Por que criou os Apreciadores? Por que teve Alex? Por que nunca esqueceu de mim? Por que não passou pelo luto como uma mãe normal?
Adele olha para mim, a surpresa tomando seus olhos e substituindo a dor. As lágrimas que estão em suas bochechas secam, tamanho é o tempo que ela passa me encarando.
– É isso que você quer saber? – Ela pergunta, muito tempo depois. Sua voz está rouca pelos gritos. – Os porquês?
– Se não for muito incômodo. – Resmungo.
– Você foi a única coisa que importou para mim, Juliana. – Adele responde. – Durante toda a minha vida, a única coisa pela qual valeu a pena lutar.
– E você provou isso me mandando para a casa de bruxas por toda Nova Orleans, para limpar privadas e servir crianças mimadas. – Zombo.
– Isso fez de você a mulher que você é. Te deu de presente o dom maravilhoso da vida eterna.
– Você não é responsável por isso. – Digo, minhas feições se fechando. – Não se dê tanto crédito.
– Sou tão responsável pelo que você é quanto sou pelas mortes de suas irmãs. – Ela responde.
Agarro os dois braços machucados dela, fazendo com que ela grite.
– E quanto a Alex? – Pergunto. – Por que você fez o que fez com Alex?
– Eu queria que ela tivesse o que você teve! – Ela grunhe – Eu sabia que o vampirismo acabaria e eu queria que Alex tivesse o que você teve. A vida eterna, eu fiz os experimentos e... – Fecho as mãos com mais força em seus braços para avisar que ela não está me convencendo. – EU QUERIA QUE VOCÊ VOLTASSE. Queria que você voltasse e imaginei que se machucasse sua irmã, você voltaria e falaria comigo.
Solto os braços dela e fico com nojo das minhas mãos sujas.
– Eu falei com todos os membros dos Apreciadores em Paris. – Lembro. – Você sabia onde eu estava, por que não veio falar comigo?
Ela se coloca de pé com dificuldade e volta para o interior da sala. Pega o copo de conhaque e o termina em um gole, para anestesiar sua dor.
– Eu queria que você voltasse, Juliana. – Diz, quando termina. – Que fosse você a falar comigo. Queria ver você e ter certeza de que você estava bem. Se eu fosse atrás de você não seria o mesmo que ver você vir até mim, falar comigo e erguer a voz para mim.
Me coloco de pé também e sem olhar para trás, entro na sala.
– Eu estou aqui, mamãe. – Digo. – Voltei para você e para Nova Orleans. Eu voltei e fiz todas essas coisas. Você tem o que você desejava. Agora me diga qual o sentido disso tudo.
Adele Mayfair lança um olhar na minha direção. O olhar transmite muita coisa, mas não me diz nada, como se ela se comunicasse em outra língua.
No instante seguinte, ela quebra o copo na mesa de café e enfia um grande caco de vidro na própria traqueia.

Bucareste, Romênia
21 de outubro
Eleanor
Depois de comprar um caderno azul safira em uma papelaria no centro, eu me vejo escrevendo em um diário pela primeira vez em mais um século. Faço isso em público, em uma cafeteria com vista para uma rua de comércio, movimentada a essa hora da tarde. Não sei exatamente o que estou fazendo aqui, exceto pelo silêncio que habita a casa onde ainda estou. Me peguei sentindo falta até mesmo de Pierre, então precisei sair. Ver gente melhoraria meu humor.
Começo a escrever, sem me decidir em qual língua vou registrar meus pensamentos. A caneta corre solta, variando entre o inglês dos meus pais, meu francês natal, o romeno que me cerca, o português brasileiro de Olívia e o alemão firme de Kat. Pensar nisso faz com que meus registros voem até o dia da batalha final. A cacofonia de línguas com as quais nos comunicamos nos dias em que passamos na Antártica – cada uma querendo falar sua língua materna, encontrar um pouco de familiaridade no caos.
Uma bicicleta buzina do lado de fora e me faz saltar. Percebo que já tomei sete páginas do diário novo, me lembrando de como Kat costumava fazer com o seu. Seus registros eram interrompidos por anos, para em seguida passarem das dezenas de milhares de palavras em duas semanas. Eu preciso parar de comparar tudo que eu faço a Kat – de me lembrar dela a cada situação –, mas não consigo.
Deixo a caneta de lado e pego a garrafa de água que pedi como distração. Observo as pessoas ao meu redor, envolvidas em sua conversa ou em seu café. Apenas dez pessoas estão ali, mas a cafeteria é tão pequena que parece cheia. Um jovem distraído lê um livro enorme enquanto engole grandes goladas de um copo grande café. Uma família de quatro aproveita um momento de paz enquanto um bebê dorme e uma menininha de dois anos assiste alguma coisa em um tablet. Uma adolescente parece entretida demais no seu bolo de chocolate para perceber qualquer outra coisa. Um senhor de idade lê jornal enquanto toma uma pequena xícara de espresso. Enfim, duas mulheres apenas um pouco mais velhas que eu, conversam animadamente. De onde estou, só vejo o rosto de uma e antes mesmo que preste atenção com mais cuidado, eu posso sentir que a parte mais irritante de ser o Réquiem vai acontecer novamente.
Uma vez ou outra, eu me pego olhando para alguém e acabo vendo mais do que eu deveria estar vendo. Quando seus poderes envolvem conhecer corpo e alma, você acaba sabendo demais e o conhecimento é uma grande maldição. Às vezes eu posso sentir quando alguém enfrentou um trauma profundo ou está escondendo um grande segredo. Não consigo entender como, mas eu sei. Em outras vezes, eu olho para o corpo de alguém e noto um movimento imperceptível de uma bexiga cheia ou até mesmo células de câncer se formando. É rápido, dura um milésimo de segundo, mas eu sei o que sei e permanece comigo por muito tempo. Às vezes eu não consigo tirar os olhos da pessoa por tempo demais e em outras eu tenho rompantes dos sentimentos transmitidos pela pessoa. E quando você é amaldiçoada a ser controlada pelos próprios sentimentos...
Quando olho para a moça de cabelos altos e feições sinceras, eu não sei o que deveria estar vendo. Ela tem aquela impecável pele negra de Juliana e a confiança de alguém que consegue assumir o controle de qualquer situação. Não vejo nada, mas não consigo tirar os olhos, então a examino novamente. Meus olhos finalmente se ligam aos dela.
Seus olhos são enormes bolas amendoadas, com repuxos quase imperceptíveis. São castanhos, mas de um castanho tão profundo que parece vermelho. Eles absorvem a luz a sua volta, lançando pequenas faíscas rubras. Brilham tanto que chegam a refletir em sua pele. Só de olhar naqueles olhos eu sei que ela não é romena, mas está em Bucareste com um objetivo muito específico. Seus olhos se movem lentamente e eu percebo que a mulher à sua frente é sua melhor amiga e... ex-namorada? Algo aconteceu que afastou as duas romanticamente, mas sua ligação segue firme. Me pego desejando saber mais, mas ela pisca e um cílio cai de seus olhos até a mesa. Sou distraída por esse movimento e acompanho a queda do cílio com atenção. Quando ele atinge a mesa, eu tenho um lampejo de algo. Um sentimento? Uma impressão? É rápido demais para mim.
Quando olho novamente, ela está olhando em minha direção, assim como sua amiga.
Afasto o olhar rapidamente, encarando minha garrafa de água como se fosse a coisa mais interessante do mundo. Deus, Ellie, quão entediada você pode estar?
Volto ao diário, mas perdi a vontade de escrever. Rabisco distraidamente as formas de um vestido. Dois minutos depois, resolvo sair para comprar tecidos, evitando o olhar das duas amigas, mesmo estando muito consciente de sua presença. Respiro fundo quando volto à rua, evitando olhar para qualquer pessoa. Não quero que isso aconteça de novo, ou nunca mais. Não me importo em saber demais sobre estranhos ou ver o que não queria. O problema é a sensação de que estou me revelando para eles também.
Quando chego à loja de tecidos sinto uma mão em meus ombros e me viro me preparando para lutar se for preciso. As duas amigas me esperam do outro lado. A segunda delas tem a pele da cor dos olhos da primeira e é tão atraente quanto. Seus cabelos são uma cascata negra e ela tem o tamanho de Anika, talvez um pouco mais alta. De perto, as duas são tão lindas que chega a doer.
– Eleanor? – A mais baixa pergunta.
– Como você sabe meu nome? – Pergunto, em romeno.
– Desculpe, não entendemos romeno. – A dos olhos hipnotizantes avisa, em inglês com um sotaque carregado.
Minha mente treinada precisa de tão pouco para identificar um sotaque que quando eu respondo, falo em sua língua nativa, o espanhol:
– Eu disse: Como vocês sabem meu nome?
– Você é o Réquiem, certo? – Aquela cujos olhos eu evito diz – Todo mundo em nossa cidade sabe seu nome.
– Meu nome é Siena. – Diz a menor. – Esta é Rubí. Estamos aqui à sua procura.
– E me encontraram. – Respondo, querendo escapar daquilo. É tudo que precisava: Além dos mortos me procurando, os vivos me perseguindo. – O que desejam de mim?
– Podemos ir para um lugar privado? – Rubí pergunta.
Queria que ela parasse de falar comigo. Existe um tempo máximo durante o qual eu vou conseguir evitar seus olhos.
– Não tenho tempo. – Minto. – Podem falar agora.
– Ellie...
Meu apelido em sua boca me faz soltar um rosnado. Estou ficando com raiva e perdendo o controle. Ótimo.
– Tudo bem. – Siena diz, levantando as mãos em uma oferta de paz. – Se assim você deseja, falaremos aqui.
– Por favor. – Peço, tomando coragem e olhar diretamente em seus rostos.
Os olhos de Rubí me atraem para ela quando são tomados por uma raiva surpreendente e apavorante. É ela quem fala, me acusando em sua língua materna, muito mais antiga que o espanhol falado hoje:
– Que diabos você fez com nossas almas?

Kaylee
– Já chega! – Sophie grita, atirando uma almofada em meu rosto.
– O quê? – Digo, confusa.
– Como passar tempo com você consegue ser mais chato do que passar tempo com Ellie? – Sophie pergunta. – Estamos falando de Ellie.
Coço o braço distraidamente e desvio o olhar dela. Estamos deitadas no sofá da sala, esperando uma chuvinha chata que cai lá fora passar. Fechei os olhos há dois minutos e Sophie deve ter suspirado umas cinco vezes durante esse tempo.
– Talvez você devesse ter ido com ela. – Digo.
Sophie revira os olhos.
– Não seja ridícula. – Ela despreza a ideia. – Existe um limite no número de vezes que eu consigo ouvir o nome de Kat e ele foi extrapolado dois dias atrás. Só estou dizendo que se eu soubesse que ficaria com alguém que nem está aqui de verdade, eu teria arranjado algo para fazer.
Me encolho ainda mais no sofá, querendo sumir no estofado confortável.
– Desculpe por estar pensando nos meus próprios problemas, vossa alteza. – Digo, baixinho.
– O termo correto para uma condessa é vossa graça, mas eu entendo e perdoo a confusão. – Sophie sorri, mas dá um pequeno chute no meu joelho com a ponta dos pés. – Se você quer pensar nos seus problemas, pelo menos os diga em voz alta. Juro que eu ficarei calada e ouvirei você.
– Não sou de falar sobre meus problemas, Sophie. – Digo, mas meus olhos viajam tão rapidamente para o teto que ela entende no mesmo momento.
– Ah sim, seu problema.
Não digo nada e me recuso a voltar a olhar para Sophie, mas me pergunto se ela também consegue ouvir Amelie dormindo. Eu consigo ouvir cada respiração dela, cada movimento, como se eu estivesse dentro daquele banheiro, ao seu lado. A energia mortal dela toma conta da minha e me enfraquece.
Bêtises lesbiennes. – Sophie resmunga, se levantando.
Olho para ela, surpresa.
– Você sabe que eu sei francês, certo? – Pergunto.
– Sei. – Sophie responde. – E sabe mais o que eu sei? Que você vai ficar cada dia mais deprimida e distante enquanto não resolver isso. A única coisa de que você costumava ter medo era de si mesma, Kaylee. Não deixe que ela seja outra dessas coisas.
Ela estica a mão para mim, para me ajudar a levantar do sofá, mas eu me encolho na direção contrária. Sophie revira os olhos e se aproxima e quando eu tento novamente me afastar para o mais longe possível, ela toca minha mão com carinho. Uma onda de energia me atravessa. É doce e suave como um banho quente. Invade meus ossos, relaxa meus músculos e me deixa mais desperta. Eu me vejo me esticando e me espreguiçando quase contra minha vontade.
– Como você...? – Começo a perguntar.
Sophie dá de ombros, afastando as mãos das minhas.
– Ellie me ensinou. – Ela responde. – Aparentemente a mãe dela podia fazer isso, mas ela não pode. É só uma projeção de sentimentos bons de mim para você. Depressão é só uma reação química no seu cérebro, não é tão difícil de alterar.
– Você não deveria me ensinar isso? – Pergunto. – Já que eu sou sua pupila?
– Uma regra bruxa para você: Nunca ensine aos seus pupilos tudo que você sabe, ao menos que você queira ser destruída por eles. – É a resposta dela.
Quero rebater, mas de repente algo vem à minha cabeça.
– Foi isso que você fez quando Charlottie morreu não foi? – Pergunto, sem pensar muito. – Alterou a química do cérebro de todo mundo.
Sophie não responde. Seus olhos ficam tristes por um momento, mas não saem dos meus. Queria ser metade de quão forte ela é.
– Podemos ir lá para cima? – Ela pergunta.
Ainda não quero ir, mas com o ânimo renovado, eu sei que preciso ir. Me coloco de pé e sigo Sophie até meu quarto. A maçaneta do banheiro está quebrada e queimada como garantia de que ela não sairá de jeito nenhum.
– Sério, Kaylee? – Sophie pergunta.
Dou de ombros e desfaço o feitiço que sela a porta com um pensamento. A volta do feitiço para mim faz com que um pouco da tristeza volte e eu queira sair correndo, mas Sophie sente minhas intenções e toca meu ombro, me empurrando para a frente. Ainda assim, é ela que abre a porta e anuncia para Amelie, indicando a privada fechada:
– Sente-se.
Eu entro e evito olhar para Amelie quando Sophie sai para pegar uma cadeira. Olho para todos os outros aspectos do banheiro: O espelho quebrado, a janela suja de sangue das diversas tentativas de fuga, os tufos de poeira e cabelo no chão. Respiro fundo e sinto o fedor de esgoto e excrementos. Me sinto enjoada, mas parte disso se deve a ter que lidar com Amelie.
Sophie volta e coloca a cadeira com as costas viradas para a privada, se sentando como um policial de um filme de comédia.
– Eu vou fazer uma série de perguntas e resolveremos sua situação hoje. – Ela explica. – Você conhece Pierre, sabe que as condições de prisioneiros do Exército são muito mais confortáveis do que as que você tem. Se você está presa aqui hoje é porque tem desagradado Kaylee e isso não é nada que não possa ser resolvido. Então, tente agradá-la, ok?
Sinto o peso do olhar de Amelie em mim e finalmente reúno forças para olhar para ela. Ela está um caco. Suja, cansada e com os olhos muito fundos. Consigo ver feridas em todo seu corpo e a blusa parece mais funda em seu peito. Desvio o olhar assim que vejo esse machucado em especial.
– Por que ela não me pergunta? – Amelie pergunta.
Sophie ergue a sobrancelha.
– Eu disse que eu faço as perguntas. – Ela avisa. – Se você tem algum problema com isso, a gente sempre pode ir embora ou te transferir para o porão. E você sabe muito bem que não existe porão nessa casa.
Amelie rosna e encara Sophie com ferocidade no olhar. Sophie responde ao olhar com a mesma intensidade. Eu me aproximo da pia e me escoro nela para acompanhar o debate. Sei que ao menos vou me entreter.
– Então, nós não podemos matar você? – Sophie diz, mudando a entonação no fim da frase para deixar claro que é uma pergunta.
– Vocês já me mataram. – Amelie responde.
– Uma evasiva? Sério?
Um suspiro chiado ressoa pelo banheiro.
– Não. – Amelie resolve responder. – Vocês não podem me matar. Eu pertenço à Morte agora e se ela não me aceitar, eu não posso morrer.
– Mas claramente nós poderíamos machucar você... – Sophie diz, mais para si mesma do que para ela. – Você sente dor. E ainda tem sentimentos.
– Isso não são perguntas. – Amelie diz.
– Eu sei. – Sophie responde. – Só estou pensando em como você não veio em busca do Exército para matar Kaylee, apenas o resto de nós.
Isso aconteceu mais rápido do que eu pensava.
– Você não tem como saber disso. – Amelie rebate.
– Sim, eu tenho. – Sophie diz. – Você estava com o Exército quando o Clã Romeno descobriu como matar o Réquiem e sabia como matar Kaylee. E você é um soldado, sabia que matar Louise e em seguida matar Kaylee era a opção mais lógica. Ao invés disso, você levou o Clã para distrair todas nós enquanto tentava recrutar Kaylee para a Morte.
Amelie encara Sophie sem mover um músculo do corpo. Duvido até que respire. É claro que Sophie estava certa e eu sabia muito bem disso. Dias e dias sem querer sair do meu quarto pensando sobre o ataque me fizeram chegar à mesma conclusão.
– Volte às perguntas, Sophie. – Digo, de onde estou.
Sophie me lança um olhar surpreso e dá de ombros distraidamente, antes de perguntar:
– De que forma você ama Kaylee?
– Sophie! – Grito.
– Pelo amor de Deus. – Sophie diz, revirando os olhos. – Eu não sou cega. E sinceramente, somos um Exército de treze jovens mulheres. Eu estou surpresa por eu ser hétero. Kaylee, se os seus sentimentos por Amelie são mais do que fraternos, não tem porque essa ser uma das coisas que te fazem se odiar.
– Ela está certa, Kaylee? – Ouço a voz de Amelie dizer.
A voz está diferente, não é a mesma voz raivosa que eu ouvi gritar nos últimos meses e nem a voz desafiante com a qual ela respondia a Sophie. É a voz de Amelie, a minha Amelie, a Amelie de antes de eu matá-la.
– A pergunta foi para você. – É tudo que eu respondo.
Amelie volta a olhar para Sophie, para quem lança faíscas de ódio.
– Eu amo a Kaylee da mesma forma que ela me ama. – É sua resposta. – Ou que eu achava que amava, antes que ela me matasse.
– Ah, por favor. Não se faça de vítima. – Sophie revira os olhos – Ela te amava tanto quanto amava a própria alma, por isso te sacrificou.
– Ela nem tinha uma alma.
Touché. – Sophie responde. – Ainda assim, você fez com que uma vampira criasse uma ligação forte o suficiente com você quando ela nem podia sentir. Romanticamente falando, você foi a única pessoa a conseguir essa proeza com alguém do Exército, não estando ligada a nós por sangue.
– Seu ponto? – Amelie pergunta, travando a mandíbula em seguida.
Sophie lança um olhar para mim antes de dizer:
– Por que você não está fazendo o mínimo esforço para recuperar sua ligação com Kaylee? E não me diga que é por causa da Morte, porque esse é um péssimo motivo.
Amelie cruza os braços sobre o peito. Sua camiseta se afunda ainda mais na pele e mesmo sendo menos sensível ao cheiro de sangue agora, eu sei que sangue fresco sai da ferida em seu peito. Será que ela realmente tem um buraco onde ficava seu coração?
– O único motivo pelo qual eu estou diante de vocês agora é a Morte ter me trazido de volta. – Amelie diz. – Ela me fez renascer para ser um soldado, sua guerreira sem coração. Eu deveria convencer Kaylee a se juntar a ela e destruir a guerra por dentro. Usar os sentimentos da nova bruxa do Exército. E até onde eu sei a guerra ainda não terminou.
– Você ainda está tentando me recrutar? Para a Morte? – Pergunto antes de perceber que falei.
– Você não declarará qual seu lado até a batalha. – É o que Amelie responde.
– Eu já fiz essa escolha, Amelie. Terminou com a sua Morte. – Lembro a ela.
– Então por que você me mantém presa aqui? – Ela pergunta. – Não pode ser apenas por medo de que eu mate você. Sua alma está bem guardada.
Não respondo. Sophie enfia as duas mãos no cabelo, uma de cada lado do rosto, pensando enquanto respira fundo.
– É sobre isso que a batalha com a Morte será? – Ela pergunta. – Sobre Kaylee fazendo uma escolha entre suas irmãs e a mulher que ela ama?
– Sophie... – Começo a resmungar.
– Pergunte à sua vidente. – Amelie me corta.
Eu e Sophie nos entreolhamos.
– Ela não está... – Sophie busca as palavras certas – Disponível para previsões no momento.
Amelie ergue a sobrancelha e olha para nós duas antes de dizer:
– A batalha com a Morte será sobe mostrar que vocês são fortes o suficiente e merecedoras o suficiente para viver para sempre. O Inferno já derrubou cinco das mais fracas, a Morte levará a última.
– Mas eu já venci à Morte. – Digo. – Nesse sentido, ao menos.
– Você tem tanta sorte. – Amelie resmunga – Premiada com a vida eterna neste novo obscuro e doentio.
Sophie se coloca de pé.
– É o suficiente por hoje. – Ela diz. – Tenho uma proposta para você.
– Vocês negociam com prisioneiros agora? – Amelie pergunta.
– Kaylee... – Sophie chama, a ignorando. – Ela merece um acordo?
– Faça o que quiser com ela. – Respondo, dando de ombros.
Sophie sorri cruelmente.
– Essa frase é cada palavra que eu queria ouvir. – Ela se aproxima de Amelie – Digamos que eu encontre uma forma de curar essa ferida em seu peito que está prestes a me deixar maluca e te deixe dormir em um quarto confortável esta noite... – Ela deixa no ar. Amelie não demonstra fraqueza ou intenção de aceitar, então ela continua – Você contaria o que sabe sobre os planos da Morte?
– E colocar a minha existência em risco? – Amelie pergunta.
– Se ela matar você é uma vantagem para nós. – Sophie diz. – Ela não fará isso. Se fizer, não é como se eu me importasse.
– Kaylee se importaria.
Eu bufo, cansada de ser jogada nisso com tanta frequência.
– É um acordo, ninguém está obrigando você a aceitar. – Digo.
– Exato. – Sophie concorda – Eu posso dar a você mais algumas horas aqui dentro. Ou, eu posso ligar para Ellie e pedir que ela traga sopa e pão de Bucareste.
Amelie se surpreende.
– Você amoleceu desde que sua irmã morreu. – Ela diz, de sobrancelha erguida.
– Você está acabando com a minha paciência. – Sophie rebate.
– O quarto mais distante daqui possível. – Ela pede. – E sem tranca no quarto. Coloque um feitiço na casa ou um guarda-costas, mas eu quero ao menos poder sair do quarto.
– Tudo bem. – Sophie concorda, abrindo espaço para Amelie deixar o quarto – Eu estou realmente me sentindo mais piedosa hoje. Porém, você vai contar tudo para Ellie, Kaylee e eu. Ainda esta noite.
– Como quiser, vossa alteza. – Amelie resmunga, saindo de sua prisão improvisada.
– É vossa graça. – Corrijo, seguindo as duas para fora do banheiro com um suspiro de alívio.

Piatra Neamţ, Romênia
25 de outubro
Olívia
Estou quase pegando o sono quando vejo o grupo de pessoas se aproximar da casa. Estou tão cansada e a luz do sol é tão acolhedora que eu nem me dou conta do que significa um grupo tão grande se dirigindo na direção da porta. Apenas quando o som da campainha ressoa no andar de baixo, eu me dou conta de que porque fui para a janela do meu quarto em primeiro lugar.
Quando chego à entrada, Anika já abriu a porta e está abraçando Ellie animadamente. A sala está em fuzuê de abraços e saudações, mais de quinze pessoas se entrelaçando. Corro para fazer o mesmo com as outras recém-chegadas. Quando chego a Juliana, me surpreendo com sua altura.
– Você está... Diferente. – Digo, dentro do abraço dela.
Em resposta, Juliana se afasta e chuta os saltos do pé.
– Nova Orleans não vai aceitar uma nova rainha se ela parecer ter treze anos. – Ela diz, com um suspiro.
Me afasto e vou para o próximo abraço, um abraço efusivo de Tatiana. Quando termino de saudar a todas e lançar um aceno para Pierre, eu percebo duas visitantes desconhecidas atrás de Ellie. É por causa delas que a sala cai em um silêncio completo por alguns segundos. Uma delas, a mais alta, é negra com lindos cabelos crespos que se agigantam sobre ela e o par de lábios mais bonito que eu já vi. São os olhos, intensos, ferozes e quase vermelhos de tão castanhos que chamam mais atenção.
– Essas são Rubí – Ellie começa a apresentar, em espanhol, apresentando a mais alta. – E Siena.
Finalmente olho para a mais baixa. Ela tem traços indígenas e cabelos tão lisos quanto os de Kaylee. Elas inclusive se parecem um pouco e eu olho para Kaylee para confirmar a observação, apenas para me surpreender quando percebo Amelie ali, parada ao lado dela.
– Vocês têm muito o que contar. – É a única resposta que tenho.
Uma respiração profunda generalizada corre a sala, confirmando o que eu disse. Anika corre para instalar todas em seus lugares, a boa anfitriã que é. Eu a ajudo nisso e aos poucos a casa se organiza. Quase duas horas depois da chegada de todas, nós nos trancamos espalhadas em meu quarto, apenas as oito restantes do Exército, prontas para colocar todas as informações em dia.
– Comece você, Anika. – Kat diz – Por que nos chamou aqui?
Ah, isso. Anika se sente ainda mais incomodada pela situação do que eu. Ela enfia as mãos nos bolsos do vestido dourado que usa, tira os sapatos, os calça novamente, toca a coroa de flores no cabelo e finalmente a arranca, começando a destruir as flores, quando diz:
– Algo estranho aconteceu há dois dias. Eu mandei um demônio de volta para o Inferno com apenas uma palavra.
Exorcismo não tem nada de incomum. – Sophie comenta.
– Sophie, a palavra foi Valentina. – Anika conta.
Nos entreolhamos em silêncio, as meninas completamente confusas.
– Conte mais. – Ellie pede.
Anika suspira, uma flor vermelha perdendo as pétalas em sua mão.
– Uma família trouxe um senhor para mim. – Ela começa. – Ele havia morrido na noite do dia 30 de setembro, mas voltou minutos depois. Não era ele de verdade. Um demônio assumiu seu corpo e vindo da guerra, ele não parava de falar no Exército. Então, a família não o levou em um exorcista normal, o trouxe para mim. Eu tentei a coisas normais, mas nada adiantava. Pensei que talvez não fosse um demônio, fosse uma das almas que Valentina tirou do Inferno, mas quando me virei para Olívia para dizer isso, o demônio deixou o corpo violentamente assim que ouviu o nome.
O quarto cai em silêncio. Eu pego uma almofada que está ao meu lado e abraço, esperando por algo.
– Ao menos temos certeza de que foi um demônio? – Kaylee pergunta, olhando para mim.
Eu deveria saber esse tipo de coisa, mas não é tão fácil.
– Eu não sei. – Respondo. – Pode ter sido. Ou pode ter sio outra criatura que escapou do Inferno naquela noite. Ou uma das almas de Valentina.
– Não foi uma das almas de Valentina. – Kat diz, decidida.
– Como você tem tanta certeza? – Pergunto.
Sophie, Kaylee e Kat olham para Ellie, que solta um gemido antes de explicar:
– Eu sei onde as almas que Valentina libertou estão. As que não voltaram para o controle do corpo de seus donos, naturalmente.
Anika e eu nos inclinamos na direção de Ellie, atraídas por ela.
– Porto Williams. – Ellie diz, simplesmente.
– A cidade no sul do Chile onde aconteceram eventos sobrenaturais? – Juliana pergunta.
Ellie concorda com a cabeça.
– A cidade habitada mais meridional do mundo. – Ela começa. – Existe uma montanha lá, onde dizem existir um buraco que leva direto para o Inferno. Foi onde as almas saíram.
O queixo de Anika cai.
– Então elas estão lá? – Ela diz. – Simplesmente assombrando todo mundo?
Ellie coloca as duas mãos nas bochechas.
– É esse o problema. – Ellie explica. – Elas estão lá e fora do Inferno, mas não estão livres. Sabem Rubí e Siena? Elas são ex-vampiras chilenas, nascidas em Porto Williams que não queriam receber a alma de volta, mas estariam satisfeitas com o seu destino não fosse por um pequeno problema: Elas agora carregam a mesma maldição que eu.
– Você vai ter que rebobinar um pouco e explicar isso direito. – Tatiana reclama.
Kat assume o papel de Ellie nesse sentido:
– A lenda diz que o primeiro Réquiem nasceu ao cair em um buraco que levava direto ao Inferno. Ao cair, ela ficou presa pelo tornozelo e foi puxada de volta por ele. Ela recebeu a chave do Inferno porque ninguém vai ao Inferno e volta da mesma forma.
Eu olho em volta, sabendo que é verdade. Juliana voltou bruxa. Eu tenho o Toque dos Céus. Tatiana não pode mais ser queimada. Ellie é o Réquiem.
– Aparentemente, isso tudo aconteceu em Porto Williams. – Ellie diz – Que então se tornou habitada. Graças a isso, sempre que um Réquiem surge, a alma de todos que nasceram ou foram formados na cidade enquanto ela está viva, pertencem a ela. Estão ligados a ela.
– Todas as almas em Porto Williams estão amaldiçoadas. – Anika solta.
– Todas as nascidas nos últimos treze meses ou as que foram para lá nos últimos treze meses. – Ellie concorda. – Isso inclui as almas que saíram do Inferno.
– Por isso os olhos de Rubí são tão estranhos. – Eu resmungo.
Ellie ergue a sobrancelha, mas não diz nada.
– Vocês fazem minhas novidades não parecerem nada. – Juliana comenta, se jogando em minha cama.
– Isso significa que você pode salvar elas? Mandá-las para a paz? As almas de Valentina, Miranda e Charlottie? – Anika pergunta, quase de uma vez só.
– Em teoria, não, mas com a ajuda de Olívia, sim. – Ellie diz. – O problema é que não posso fazer enquanto eu estiver amaldiçoada. Eu ainda pertenço ao Inferno nesse sentido.
– Então precisamos acabar com sua maldição. – Anika completa, se colocando de pé.
Como se essa frase invocasse o Inferno, a porta – que estava trancada – abre com vontade, todas as partes da fechadura se quebrando. As que estavam mais perto da porta se afastam enquanto um Pierre claramente possuído entra no quarto.
– Você só pode estar de brincadeira comigo. – Kat diz se colocando de pé. – O que foi agora?
– Ora, Katerina. Eu trago boas notícias. – Uma voz rouca e deformada sai da boca de Pierre. Seus olhos estão febris e hipnotizados.
Por alguns segundos, eu penso em como algo assim poderia ter acontecido facilmente durante a guerra, mas não aconteceu. O pensamento vai embora tão rapidamente quanto veio.
– Não há como boas notícias virem do Inferno, Abadom. – Kat anuncia.
– Eu vim propor um acordo. – O demônio responde. – Qualquer coisa que você quiser, qualquer pedido que desejar fazer, apenas por uma coisa em troca.
– Minha resposta é não, assim como a das meninas. – Kat responde. – Não desejamos nada do Inferno.
– Nem mesmo a liberação da maldição de Ellie? A liberdade de Pierre? – O silêncio recai sobre a sala novamente. Nos entreolhamos sem dizer nada. A resposta pairando diante de nós. – Foi o que eu pensei.
– O que o Inferno deseja em troca disso tudo? – Kat pergunta, mais baixo.
– Que o Exército de Kat feche a ruptura. – Abadom responde. – Vocês são as únicas que podem fazer isso. Até a maior lua sangrenta.
– Isso é quando a batalha contra a Morte vai acontecer! – Anika anuncia.
Mas o demônio já deixou o corpo de Pierre sem dizer mais nada. Enquanto o corpo sem vida cai no chão, Kat xinga em três línguas diferentes, reclamando de como ela terá que retornar o contato. Em seguida, ela olha para nós.

Em silêncio, tocamos nossas pedras. Somos um Exército mais uma vez.