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Este texto não é sobre as minhas restrições em relação à palavra "bookstan", até porque se eu não me considero parte da comunidade, minha opinião é completamente irrelevante. Este texto é sobre todos os aspectos de ser "bookstan" que eu nunca vou experimentar, porque a minha época de ler em comunidade foi 10 anos atrás. Tem mais de um ano que eu tento escrever este post, mas eu acabo sempre ficando bloqueada e abandonando o texto no meio. Mas neste último dia do Mês Literário menos literário desde que o Mês Literário começou a existir, eu sinto que devo a vocês um texto profundo sobre meus sentimentos em relação a livros.

É difícil me livrar da sensação de que eu preciso ser muito responsável com cada palavra que eu escrevo para não ser mal interpretada, mas eu preciso me lembrar que independente de quanto tempo eu passe trabalhando neste texto, alguém vai odiá-lo. Outro dia mesmo, eu acabei caindo na armadilha do textão quando eu fui fazer a Tag dos 50% no Instagram por causa de algo que aconteceu meses atrás. Quando eu cheguei a 5 livros lidos no começo do ano, eu fiz uma enquete no Instagram sobre quantos livros outras pessoas da minha faixa etária, com trabalhos que exigem muita atenção, tinham lido até aquele momento. Especifiquei a faixa etária e o tipo de trabalho porque estava pensando no meu grupo de amigos, pessoas com quem eu já tinha conversado e que sabia que tinham dificuldade em ler muito, assim como eu. Não tinha como ser mais específica, mas eu chamei a enquete de "realista" porque as opções eram entre "nenhum" e "5 ou mais". Aparentemente, a palavra "realista" bateu muito, porque recebi uma série de diretas e indiretas via stories nos dias seguintes, de pessoas que leram bem mais de 5 livros em dois meses.

Eu já "me justifiquei" sobre o uso dessa palavra na legenda do post do Instagram, mas o motivo pelo qual eu estou falando sobre essa situação de novo é que ela ilustra muito bem como é impossível "ler livros da forma certa" nas bookredes (a parte da internet que fala sobre livros). Quer você leia 200 livros em um ano ou 2 livros em um ano, quer você só leia livros de 100 páginas ou livros de 1900 páginas, alguém vai ter uma opinião sobre a forma como você lê. E se você tentar encontrar um grupo de pessoas que lê da mesma forma que você, alguém vai ficar bravo também. E nem tente dizer algo como "Não importa quantos livros você leia, você é um bookstan se sentir um bookstan" porque alguém vai ficar bravo também.

Não me entendam errado, eu senti a pressão de ler o máximo de livros possível por muito tempo. Por anos, ser a "menina que lê" era a minha personalidade inteira. Literalmente. Eu nem tinha amigos na escola, mas eu sempre estava com um livro em mãos e sempre ouvia "Sempre que eu te vejo você está com um livro diferente". Grande parte dos livros da minha estante foram presentes, já que minha lista de livros desejados nunca acabava. Eu nem fazia para provar nada, mas porque livros me traziam segurança, conhecimento e silenciavam um universo de pensamentos adolescentes que me assustavam muito.

Foi a faculdade que destruiu essa versão de Giulia. Com um tipo novo de ansiedade e novos sintomas de TDAH não-diagnosticado que chegaram com a idade adulta, minha hiperfixação em livros foi se apagando e ler foi ficando cada vez mais difícil. Eu descobri que isso é algo que acontece com muita gente, em especial quem cursa algo com muita leitura. Seu cérebro é consumido pelos textos acadêmicos e a última coisa que você sente vontade de ler mais no seu tempo livre. Não é uma experiência universal, nem de longe. Minha própria irmã, sangue do meu sangue, começou a ler mais depois de entrar na faculdade. Mas se a sua experiência é a de não conseguir ler, você não está sozinha.

Saber que não é só você não é o suficiente para não se sentir vazia, porém. Nos primeiros anos, eu não sabia mais como me definir. Livros são mais do que páginas e mais do que histórias. Mesmo sem internet em casa em 2010, ler a Saga Crepúsculo naquele ano foi muito importante para minha vida social, assim como ler Jogos Vorazes em 2012 e Divergente em 2014. Eventos literários também eram e são meu lugar feliz e como me integrar a eles sem ter lido os best sellers mais recentes? Para piorar a situação, eu ainda continuei escrevendo livros. Como avançar no mercado literário sem ter lido os livros que estão sendo publicados pelas editoras? Então, eu me forçava a continuar lendo, a adicionar livros às minhas listas e a comprar livros. Acumular livros e mais livros, que seriam um pesadelo para levar quando eu me mudasse e ter uma grande lista de livros não lidos, como é popular na internet.

Ler foi se tornando menos um interesse e mais um obrigação, que para piorar a minha imagem de mim mesma, eu nem conseguia cumprir. Eu, uma escritora, que já tinha lido mais de 300 livros quando era adolescente, não conseguia sequer me obrigar a ler. Volta e meia eu encontrava um livro que me prendia e finalmente pensava "Agora vai, consegui, estou de volta", mas aí ficava muito difícil encontrar outro livro que me causasse essa mesma sede. A faculdade acabou, mas a vontade de ler não voltou. Eu comecei a aceitar que minha época Leitora™ tinha acabado e que o máximo que eu conseguiria fazer seria ler por obrigação, pela minha carreira. 

Então, 2020 chegou. A pandemia reenergizou a comunidade literária na internet e, com ela, o mercado literário. Foi nessa época que eu comecei a ouvir o termo "bookstan" com mais frequência e percebi quão distante dessa comunidade eu me sentia. Eu não lia e nem tinha vontade de ler os livros que as pessoas mais faziam conteúdo, eu começava a me perder quando falavam em nomes de escritores populares ou novos termos em relação a conteúdo de histórias. A sensação era real de ficar pensando "no meu tempo não era assim" sempre que me pegava lendo uma conversa.

Naquele ano também, um post aleatório sobre Shakespeare me fez encontrar meu único livro lido do ano, a peça Noite de Reis. Foi uma leitura que eu aproveitei grandemente, que achei com facilidade e que li sem nenhum outro interesse além do fato de que a página da Wikipédia me deixou com vontade de ler a história inteira. No resto do ano, não li mais nenhum outro livro. Com tudo fechado, sem poder sair de casa e com grande parte das pessoas do país se tornando leitoras, 2020 foi o ano em que eu menos li livros desde que aprendi a ler.

Mas a lição que ficou foi a de ler o quê e quando eu sentisse vontade de ler. Só em 2021, depois de ser diagnosticada com TDAH, eu me dei conta de que as coisas são mais fáceis quando elas me trazem bons sentimentos. O nosso sistema nervoso organiza tarefas por interesse, não por prioridade. Por isso é muito díficil se forçar a ter vontade de fazer algo e porque se dar pequenas recompensas ajuda na realização de tarefas. Eu podia usar esse conhecimento para me fazer voltar a ler livros, mas àquela altura, ler como tarefa não era meu objetivo. Eu queria voltar a sentir prazer em ler. Queria me sentir feliz e segura lendo.

Um dia daquele ano, eu tive um sonho. Nele, eu terminava de ler um dos livros que eu tinha começado e deixado de lado. O sonho foi literalmente só isso: eu terminei de ler o livro. Eu acordei me sentindo satisfeita, feliz. Cheia de dopamina. Então, eu peguei o livro para ler e terminei ele nas semanas seguintes. E foi realmente satisfatório terminá-lo. Eu gosto de terminar coisas. Terminar um livro é uma das minhas sensações preferidas, mesmo que muitas vezes eu acabe com a sensação de vazio pelos dias seguintes, porque não posso voltar para o mesmo universo pela primeira vez. E que sensação deliciosa é a de entrar em um universo e aproveitar cada segundo dele, saber que foi uma viagem bem aproveitada. Nos meses seguintes, eu só começava um livro quando sentia que terminá-lo me traria a mesma sensação. Satisfação.

Eventualmente, eu encontrei meu próprio ritmo de leitura e voltei a incorporar metas de uma forma que não me pressione ou me tire o prazer da leitura. E acredite ou não, este ano eu tive que me impedir de ler, para não acabar todos os livros da minha nova autora preferida rápido demais. O equilibro entre ter livros como o único aspecto da minha personalidade e ser a pessoa que nunca lê foi difícil de encontrar, mas ele me tornou somente a pessoa que tem livros e leitura como sinônimo de prazer. É uma versão de mim da qual eu não abro mão. Nem pela a pressão de pertencer a uma comunidade.

A única forma que eu achei de me reencontrar nos livros e me sentir assim, foi criando as minhas próprias regras, algumas que deixariam a Giulia de anos atrás horrorizada. Eu, por exemplo, começo séries de livros no livro 3 e abandono no livro 4 se eu sentir que o protagonista do livro 5 é meio chato. Eu cometo um crime de ódio se alguém disser que audiolivros não são livros. Fanfics definitivamente entram na minha contagem de livros lidos do ano, especialmente se tiverem mais de 50 mil palavras. Às vezes eu prefiro não ler um livro e só assisto a série/filme feito sobre e às vezes eu prefiro ler do que ver a série/filme feito sobre. Eu nem leio mais livros físicos, porque prefiro ler no escurinho depois do trabalho e ler com a luz acesa é um saco. E eu nunca, nunca me forço a ler quando estou sem vontade, mesmo que eu prometa um vlog de leitura para os meus seguidores.

O Prime Day no começo do mês foi outra dessas coisas que fez com que eu me sentisse distanciada da comunidade bookstan. Quase todo mundo tinha livros na lista de desejos que entraram em promoção, mas os 5 livros físicos que eu quero porque já li em ebook/audiobook e seria legal ter físico, porque a edição é linda ou porque são livros "consultáveis" como manuais e guias, não entraram, porque não tinha gente o suficiente interessada. E mesmo fazendo conteúdo e vendo livros baratíssimos, eu não conseguia sentir vontade de ler e ter nenhum dos livros. Foi uma sensação libertadora para quem tá pobre e fodida, mas também é algo que te faz se sentir sozinha. Eu não tenho interesse em ser "a intelectual" ou "não ser como outros". A sensação de observar a comunidade literária da janelinha enquanto leitora, quando eu trabalho no mercado literário como escritora, constantemente faz com que eu me sinta uma fraude. Mas eu fiz a escolha de ler por prazer. E para encontrar esse prazer, eu preciso ser honesta sobre o que eu quero e sobre o que me faz feliz. Então, eu continuo estudando, pesquisando e aprofundando meu conhecimento sobre gramática, escrita criativa e storytelling para que eu possa ser a melhor escritora que eu posso ser. Mas eu não me forço a ler o que eu não quero ou mais do que eu consigo para sentir que posso me dar um título com o qual eu não me identifico.

Finalmente, se você for um bookstan lendo isso, eu não estou dizendo que você se força a fazer o que você não quer fazer, pelo amor de Deus. Estou dizendo que se eu quisesse ser como você ou me sentir como você, eu teria que me forçar. A beleza dessas comunidades é que pessoas com interesses semelhantes se unem sob um título só. E meus interesses, atualmente, não fazem com que eu sinta que pertenço a esta comunidade.

Eu espero que tenha sido clara o suficiente para que ninguém odeie esse texto que, honestamente, vem de um lugar bem vulnerável de mim. Mas sendo bem sincera, existe uma chance grande de que o texto seja recebido de uma forma bem diferente da minha expectativa. O que resta é aceitar e esperar o feedback. A única pessoa que eu para quem eu posso prometer 100% de satisfação sou  eu mesma — eu estou trabalhando nisso.

G.