“O tempo não é nada. Os humanos estão mudando. Seus sonhos estão cheios de previsões dessas mudanças. Virá uma outra que derrubará as barreias... E eu farei a travessia.”
Anne Rice (A Hora das Bruxas)

As Crônicas de Kat:
A Hora das Bruxas

1º de abril de 2016
Versalhes, França
Juliana
Sem saber se a campainha soou quando a apertei, eu aperto outra vez. Não escuto nenhum som de onde estou e bato o pé impaciente em não saber se a campainha não está funcionando ou se a chuva faz tanto barulho que o ruído da campainha desaparece. O movimento faz com que a poça de água que escorreu de mim se levante e respingue para todo canto. Resolvo bater na porta.
Leva mais quase três minutos até que alguém apareça. A porta é aberta por uma garota que não parece ter mais de doze anos. Ela é levemente mais alta que eu, mas possui no olhar uma infantilidade que eu reconheço facilmente. Existe algo de familiar na forma como ela para, com a porta entreaberta, e me observa de cima a baixo, mas eu não saberia dizer de onde a reconheço.
 – O que você quer tão cedo? – Ela pergunta, em um francês agressivo.
 – Meu nome é Juliana. Juliana Mayfair. Fui mandada aqui para encontrar com Antoine de Castro.
Ela abre a boca para me responder, mas a fecha de repente. Seu olhar viaja entre mim e a rua atrás de mim, onde uma chuva torrencial atrapalha o caminho de quem anda para o trabalho. Com um grunhido ela abre a porta e permite que eu entre.
 – Ele não está. – Diz, quando estamos as duas dentro da casa e protegidas do som da chuva – Mas eu imagino que ele ficaria irritado se eu mandasse você para casa. Aceita um chá? Chocolate quente?
Discordo com a cabeça e ela me indica a direção de uma sala de visitas, com nada além de cortinas pesadas nas janelas e duas chaises longue. Aparentemente sua hospitalidade não se estende a toalhas para que eu me seque, mesmo que ela faça cara feia quando eu me sento em uma das chaises e molho todo o forro. Ela me oferece alguma bebida outra vez antes de pedir que eu espere e anunciar que voltará a dormir. Observo em choque enquanto ela sai da sala, sem dizer seu nome ou dar muitas explicações – ou explicação alguma. Balanço a cabeça afastando a surpresa quando deixo de ouvir seus passos.
Deixada sozinha na sala de visitas de uma casa desconhecida, eu cedo não à curiosidade, mas ao cansaço. Fecho os olhos e coloco as mãos sobre a pequena pedra de água-marinha sobre meu peito. Não durmo há três dias e dois deles foram passados rodando casas antigas exatamente como a em que estou agora. Os Apreciadores da Arte do Sangue possuem muitos doadores espalhados pela Cidade Luz, mas nenhum deles possui um senso de pertencimento ou de dívida tão grande a ponto de aceitar cuidar de Alex, depois da burrada que nossa mãe fez. Milhares de conversas e centenas de provas de que sim, eu sou uma vampira e pior, eu sou uma das treze vampiras que está em guerra contra o Inferno, a melhor pista que tenho é o tal de Antoine de Castro.
O senhor ricaço dono de uma casa antiga de quinze cômodos em Versailles também é um cientista que descende de uma família de bruxas, mas não tem poderes. Ele é conhecido por estudar seres poderosos com base em diversas outras ciências e, pelo que parece, aceitaria cuidar de uma jovem possuída por um parasita demoníaco desde que pudesse estudar o mesmo parasita. Depois de convencer uma dona de casas de show a falar com ele por mim, me deram este endereço e sugeriram que eu viesse visita-lo na manhã do dia 1º de abril. Aparentemente, seis da manhã é cedo demais ou não é cedo o suficiente.
Não sei quanto tempo espero na chaise longue de olhos fechados, mas quando abrem a porta da entrada outra vez eu percebo que dormi sentada. Uma voz masculina vem da entrada e se aproxima quando a porta se fecha com um puf delicado.
 – Evelyn? Evelyn? Eve?! – A voz chama, mais alto a cada repetição.
Quando o homem finalmente chega, se surpreende com a minha presença e se sobressalta. Me ponho de pé.
 – Evelyn abriu a porta para mim e pediu que eu esperasse aqui. – Digo, assumindo que este é o nome da garota que me recebeu. – Meu nome é...
 – Não há razão para se apresentar. – O homem diz.  – Você é a cara de sua mãe. Não poderia ser qualquer outra pessoa além de Juliana Mayfair.
Seguro o instinto de luta que liga dentro de mim ao ouvir esta frase e me concentro no que preciso fazer.
 – Você é Antoine? – Pergunto.  – Antoine de Castro?
 – Sim.
 – Pensei que estivesse esperando por mim hoje. Foi o que me disseram, ao menos.
O homem ergue a sobrancelha e se cala por um momento, abismado. Parece ter cerca de cinquenta anos, talvez um pouco mais novo que minha mãe. Seus cabelos e olhos têm o mesmo tom acinzentado que sua pele, a pele de alguém que só se expõe à luz de laboratórios. Ele está usando suéter azul e calças cáquis, carrega um pacote de papel pardo nos braços e está completamente seco – parou de chover ou ele veio de carro até a casa. Tem o rosto de centenas de outros homens ricos no mundo.
 – Definitivamente inovaram nas piadas de 1º de abril este ano. – Ele diz, depois que percebe o que está acontecendo. – O que você deseja?
O uso do pronome francês “tu” me deixa levemente afrontada, mas eu estou cansada demais para lutar por normas sociais. Vou direto ao ponto, curta como ele:
 – Preciso saber onde minha irmã está e o que fizeram com ela.
 – Alexandra não está aqui. Ou em nenhum lugar próximo. Eu não permitiria que ela viesse à minha casa.
 – Entendi. Seus experimentos são apenas experimentos.
O rosto de Antoine fica mais duro.
 – Não ouse me culpar por aquilo. Alexandra não é um experimento meu. Eu nunca faria aquilo com uma garotinha. Ela é um experimento de sua mãe e dos Apreciadores da Arte do Sangue e tudo que ela passou e tudo o que fez é de culpa deles e de ninguém além deles.
 – Você não está estudando o que aconteceu com ela? – Pergunto, surpresa.
 – Não há o que estudar. – É a resposta.  – Existe uma ruptura no Inferno e todo tipo de coisa sombria tem escapado por esse buraco. Sua mãe quis experimentar com uma dessas sombras e acabou dando errado. Tão errado que ela precisou mandar Alexandra a Paris, onde existem formas de mantê-la segura. Ou pelo menos de manter todos ao redor dela seguros.
Cruzo os braços sobre o peito.
 – Você sabe onde ela está? – Pergunto.
 – Em um prédio no centro de Paris. – Ele responde, com um sinal com as mãos  – Mas eu sugiro que você a deixe lá e volte para onde você veio. Não existe mais salvação para Alexandra.
 – Me dê o endereço.
Ele ajusta o pacote contra seu peito e responde, firmemente:
 – Não tenho autorização. E não quero mais me envolver com nada relacionado aos Apreciadores. Se você puder ir agora.
Eu suspiro, deixando a frustração clara.
 – Escute. – Digo, pausadamente.  – Eu estou cansada. Com sede. Vim desde a Romênia até aqui apenas para encontrar Alexandra e a busca por ela tem sido completamente infrutífera. Você é a primeira pessoa que eu encontro que sabe onde minha irmã está. Estou pedindo uma última vez. O endereço. Por favor.
 – Por que eu daria uma informação que pode me colocar e à minha família em risco para uma vampira que eu nem conheço? – Ele me desafia.
 – Porque se você não o fizer, este “poderia” desaparece da frase. – Rebato.  – Você se lembra do Massacre de Fevereiro de 98 em Nova Orleans, certo? Aquela foi a noite em que eu fui transformada. Imagine o que eu poderia fazer com uma casa com apenas duas pessoas?
 – Você realmente acha que eu não tenho diversas formas de defesa contra vampiros nesta casa? – Ele ameaça, mas seu olhar não tem nada de ameaçador.
Dou um passo à frente.
 – Eu acho que você tem motivos para blefar e eu não. Não tenho nada a perder aqui.
 – Eu posso matar você com um sinal com a mão.
Um grito estridente soa no andar de cima e os olhos dele se arregalam.
 – Evelyn morreria no segundo seguinte. – Digo, com o mesmo sinal de desprezo que ele fez antes. – Me dê o endereço. Posso até pensar sobre falar bem de você para os Apreciadores.
Ele hesita. Outro grito soa lá em cima e Antoine deixa que o pacote de papel pardo caia no chão, antes de dizer, com a voz tremendo:
 – Você tem uma caneta?

3 de abril
Piatra Neamţ, Romênia
Valentina
Eu sei o que Miranda diria se estivesse aqui, com uma voz professoral e metida a besta: Insanidade é o ato de fazer a mesma coisa várias vezes, esperando por resultados diferentes. Ela nunca dizia isso de forma crítica ou para me convencer a abandonar meus atos, era apenas um comentário, uma lembrança de que nossas ações, obsessões e manias nos deixariam loucas. “Você está ficando louca, Miranda. Você está se deixando louca. Não aja com surpresa quando acordar um dia e tiver perdido completamente a conexão com a realidade” era o que ela mais repetia para si mesma em Bucareste. Mas ela não desistia. Nunca.
Quando minhas mãos finalmente tocam algo diferente de toda terra dura e das raízes da árvore ao lado da qual eu venho cavando há semanas, eu chego à conclusão de que ter perseverado foi a coisa certa a fazer. Quando eu percebo o que acabo de pegar no buraco, eu chego à conclusão de que estou ficando louca.
 – Bruxas malditas, bruxas malditas, bruxas malditas. – Xingo em sérvio.
 Deixo o osso cair de volta no buraco. Preciso me recuperar antes de pegar aquilo outra vez. Ainda tem um pedaço de pele nele, mesmo meses depois do enterro. Eu amaldiçoo às bruxas e não Miranda por ter tocado aquilo, mesmo que tenham sido as palavras dela que me fizeram cavar aquele buraco por semanas.
Respiro fundo, conto até três e alcanço o osso outra vez. É pequeno, mas grosso, não quebra com meu toque firme. Quando crio coragem, fecho a mão inteira em torno do osso. Meus dedos vibram. Como um osso velho tem tanta magia? Me lembro das histórias de Kat e de Bianka sobre bonecas feitas de ossos que se comunicavam com espíritos. Não são almas, são espectros de magia. Quando não tem alma para queimá-la, a energia de uma bruxa poderosa volta pura para a Terra, junto com seu corpo. E quando você exuma uma bruxa, controla o espírito da magia ao menos que por uns instantes.
Enfio o osso no bolso da frente do jeans, assim que a “magia pura” começa a queimar meus dedos. Agora que eu sei que é verdade, vem a parte difícil: Estudar para descobrir como exatamente usar essa magia para os propósitos que eu preciso; e esconder de Persephone o fato de que eu acabo de desenterrar uma parte de sua mãe.

5 de abril
Paris, França
Juliana
 – Isso está começando a ficar ridículo. – Pierre diz, atirando uma bolsa de sangue cheia sobre a mesa em que me sento.
O fundo da bolsa estoura, abrindo um pequeno buraco que esguicha sangue. Eu me afasto por reflexo e acabo evitando que uma grande quantidade de sangue caia sobre minha blusa branca. O papel aberto sobre a mesa não tem a mesma sorte.
 – Começando? – Pergunto, pegando a bolsa outra vez e cheirando com vontade  – Você é adorável.
Começo a beber pelo furo da explosão enquanto Pierre guarda sua chave no porta-chaves e se aproxima de mim para observar o que eu estou fazendo. Estou estudando a planta do local onde Alexandra está. É um prédio de três andares que serve como clínica médica particular. Ou pelo menos é a sua fachada.
Foi fácil conseguir uma planta na prefeitura, tão fácil que eu tenho certeza de que existem muitas passagens e saídas que não estão desenhadas aqui. O que importa para mim no momento é descobrir uma forma de encurralar todo mundo lá dentro até que eu saia de lá com a minha irmã. Além de, é claro, obrigar alguém a me dizer qual a forma de mantê-la segura enquanto a retiro do país.
 – Nada ainda? – Pierre pergunta, tão perto de mim que sinto sua respiração em minha bochecha.
 – Não. Tudo que planejado parece impossível.  – Resmungo.  – Se ao menos eu soubesse onde Alex está, eu poderia diminuir a área do ataque.
Pierre olha para mim, ainda com o rosto colado no meu você.
 – Você sabe que seria mais fácil se o resto do Exército estivesse aqui, certo? – Ele diz.  – Treze vampiras fechariam um prédio com no máximo cem pessoas em menos de dez minutos.
Suspiro e coloco a bolsa de sangue, agora vazia, sobre a mesa.
 – Nós somos doze agora. – Corrijo – E, se não estou enganada, três de nós não são vampiras. E enquanto eu concordo com você quanto ao Exército tomar aquele prédio em menos de dez minutos, eu já disse meio milhão de vezes: Preciso fazer isso sozinha.
É a vez de Pierre suspirar. Ele sai de trás de mim e anda até o outro lado da mesa. Puxa a planta para o seu lado e a examina com tanta força que a sua testa se franze. Controlo uma risadinha. As últimas semanas têm sido inacreditavelmente exaustivas e algo em mim, que eu nunca admitirei o que é, agradece por Pierre estar aqui. Ele tem sido colaborativo, se mantido fora do caminho quando eu peço e sido generosos em algumas ações. Essa viagem teria sido dez vezes pior se ele não estivesse aqui.
 – O primeiro passo é deixar os elevadores inutilizáveis, é claro. – Ele diz depois de alguns minutos de estudo concentrado.
Me coloco de pé e vou para trás dele, para que ele não perceba que fiquei o encarando por todo aquele tempo.
 – É claro, mas a única forma de fazer isso é desligando a energia e isso chamaria atenção na hora. – Digo.
 – Existem outras formas.  – Ele rebate.  – Por exemplo, não é recomendável usar o elevador em incêndios. O térreo é apenas recepção e ambulatório, então eu vou assumir que Alex não está lá. Se nós causássemos um incêndio de proporções grandes o suficiente no térreo, e bloqueássemos as escadas de incêndio, todo mundo dos andares de cima estaria preso até a chegada de autoridades.
 – É um prédio no centro da cidade. – Lembro.  – Elas chegariam em dois minutos.
 – Então precisamos achar Alex antes de causar o incêndio.
Eu ainda estou insegura.
 – Existem muitas falhas nesse plano. – Digo.  – Como nós vamos sair? E se houver uma briga? Além disso, se nós fizéssemos algo que envolvesse investigação policial, a polícia olharia câmeras de segurança no mesmo dia.
Pierre se vira para me encarar. O rosto dele está quase colado no meu novamente.
 – Você está com medo da polícia? – Ele zomba.  – Quantas pessoas você ameaçou de morte publicamente só esta semana?
 – Eu não tenho medo da polícia. – Me defendo.  – Eu tenho medo de uma investigação policial internacional que traria a luz diversas coisas que precisam continuar escondidas. Além disso, é diferente. As pessoas que eu ameacei nunca iriam para a polícia porque elas têm muito a esconder.
 – Assim como os donos daquele prédio. – Pierre diz, indicando a planta com o dedão.  – Você realmente acha que eles iriam contar a polícia que dois adolescentes colocaram fogo no prédio porque queriam sequestrar uma outra adolescente que eles mantinham presa porque infectaram com um parasita infernal?
Ele tem um ponto, mas apenas um.
 – Ainda existem muitos defeitos na ideia. Como nós sairíamos?
 – Da mesma forma que o resto da clínica. – Pierre começa, voltando para a planta e tocando um pedaço do desenho que está todo sujo de vermelho escuro – Existe uma escada aqui, que na verdade é onde eu acho que deveríamos começar o incêndio. Bloqueando a escada por dentro, um de nós precisa bloquear a saída de incêndio que fica aqui atrás, enquanto o outro pega Alex e todas as informações que precisamos. Saímos com Alex pela escada de incêndio e liberamos as passagens do resto das pessoas.
 – E você é forte o suficiente para controlar a multidão que vai tentar sair pela escada de incêndio? – Pergunto, ainda cética.
Pierre fica ofendido.
 – Para a sua informação, eu já impedi exércitos de atacarem, com a força da mente.
 – OK, Senhor Eu-posso-torturar-pessoas. – Ergo as mãos.  – Seu lado soldado pode me garantir que isso vai dar certo?
Pierre levanta os olhos para mim.
 – Você vai confiar no meu plano?
 – É a melhor opção que eu tenho até agora. – Eu respondo.  – Não deveria?
 – Teremos apenas uma chance. Naquele momento ou nunca.
 – Você está tentando me convencer a ser contra ou a favor do plano?
Pierre sorri, mas com tanta malícia nos olhos que eu consigo ver todo o Inferno dentro dele.
 – Brûlons cet hôpital.

7 de abril
Piatra Neamţ, Romênia
Louise
 – Precisa existir algo. Uma coisa que seja.
 – Não, na verdade. Tudo que o Exército precisa fazer agora é treinar Kaylee, deixar Kat em paz para estudar sobre o Destino, impedir que algo aconteça com qualquer uma de vocês sete, se manter em guarda para caso haja outro ataque e esperar que Juliana volte. Isso é bastante coisa.
 – Ellie, pelo amor de Deus. Tudo que eu tenho a fazer é esperar e me manter fora do caminho.
 – É, eu acho que sim.
Eu me levanto do meu colchão e começo a andar no espaço entre eles, pensando. Ellie nem levanta os olhos para mim, assim como não o fez enquanto eu falava com ela. Ela está completamente absorta no quadro que está bordando. Até ela está entediada.
Depois de três meses de caos, com treinamento, sequestros, profecias e Danças da Morte, o Exército voltou ao tédio e a morosidade que nos acompanharam pelos dois anos entre a transformação de Olívia e o começo da guerra.
 – Vocês não podem simplesmente deixar sete vampiras entediadas. – Eu digo.  – A gente já viu o que acontece quando não existe ação no Exército.
 – Você fala como se eu fosse uma das líderes do Exército. – Ellie diz, num resmungo.  – Eu não saio delegando tarefas a vocês.
Me jogo ao lado dela, afundando o colchão e a forçando a olhar para mim.
 – Primeiro, Kat não está aqui, então você é a líder honorária. – Enuncio, erguendo o dedo.  –  É como o Exército funciona. Depois, é claro que você é uma das líderes do Exército. Mesmo antes que você fosse o Réquiem, você era uma das três mais velhas. Todas nós ouvimos ao que você diz, obedecemos a você e culpamos você quando algo dá errado. Isso é ser uma líder.
As agulhas de Ellie param no ar e ela ergue a sobrancelha.
 – E o que você quer que eu faça? – Ela pergunta.
 – Me ajude a pensar em algo para fazer. Algo que faça com que eu me sinta útil, que ajude na guerra e que não me deixe aqui sozinha pensando demais sobre tudo e ficando louca.
O olhar de Ellie se torna compreensível. Em seguida, ela zomba:
 – Em resumo, você sente falta de Juliana e ainda está chateada por ela ter viajado sem você, então precisa de algo que faça sentir que tem um proposito.
 – Você apenas repetiu o que eu disse colocando baboseira sentimental no meio. – Rebato.
Ellie sorri. Surpreendentemente isso não me assusta mais.
 – Façamos assim, você procura algo a fazer que possa ajudar e eu te apoio para as líderes de verdade. – Ela diz, voltando a bordar.
 – Mesmo que o que eu ache para fazer seja completamente perigoso e irresponsável? – Pergunto.
 – Você ouviu a parte em que eu disse que uma das prioridades do Exército é manter vocês sete vivas e seguras, certo? – Ela lembra.  – Foque em algo simples, mas interessante o suficiente para ocupar sua cabecinha por alguns dias. Nada que faça com que você sangre.
 – Isso exclui campeonato de luta livre na floresta da minha lista. – Digo, suspirando. Ellie ri, mas para de bordar de novo quando eu digo:  – Eu sinto certa falta de Amelie. Ao menos com cada osso do meu corpo em agonia, eu não me sentia inútil.
Ellie me dá uma cotovelada.
 – Pelo amor dos Céus! – Ela sibila  – Não fale nada assim na frente de Kaylee.
 – Por que? – Me sinto interessada de repente. – Ela não está bem?
 – É claro que não. – Ellie diz.  – Amelie era como uma irmã... Ou algo do tipo... Para ela. Kaylee tem sido ótima em esconder qualquer sentimento, mas cada parte daquele sacrifício foi perturbador.
 – Não foi uma das piores coisas que eu vi. – Eu digo.  – Nem se forem levados em consideração apenas os últimos dois anos.
 – Agora imagina como você ficaria se tivesse que fazer aquilo com Juliana e recebesse sua alma e seus sentimentos logo em seguida. – Ellie rebate.
 – Você tem um ponto. – Digo, com um arrepio.
Ellie volta a bordar novamente e eu encaro meus pés, esticados sobre o colchão dela. Sim, eu me importo mais com a unha que quebrei do que com o fato de que o coração de Amelie foi enterrado a alguns quilômetros daqui. Ao contrário de grande parte do Exército, eu ainda não parei para pensar sobre o vazio que existe aqui dentro. Encontrar coisas para preenche-lo parece mais lógico. É a mesma coisa com o medo do que vai acontecer depois da guerra. Ao invés de ficar pensando sobre como vou me sentir, eu prefiro pensar no que vou fazer com todo o tempo que a imortalidade sem condições vai me oferecer. Ainda assim....
 – Vai ser assim para todas nós, não é? – Pergunto.
 – O quê? – Ellie pergunta, sem tirar os olhos do que está fazendo.
 – Quando nós recebermos nossas almas de vota, tudo que fizemos, as coisas que parecem normais para nós agora, vão se tornar ruins de verdade. – Eu digo.  – E algumas de nós não irão aguentar.
 – Foi o que Persephone disse. – Ellie responde dando de ombros.
 – Quão ruim é? – Pergunto.
Ellie coloca o bordado sobre o colo e me olha nos olhos. Seus olhos são muito claros quando mostram o que ela está pensando. Ela está tentando decidir entre dizer a verdade ou ser completamente vaga, para que eu não me preocupe. Algo na forma como olho para ela faz com que ela decida pela primeira opção:
 – Não é tão ruim se você ignorar os pesadelos. – Ela diz, como se contasse uma história de terror.  – Eles fazem com que qualquer lembrança distante e reprimida volte a ser real e urgente por alguns minutos. E eu tenho fantasmas literais falando comigo o tempo inteiro, então não consigo esquecer de nada. Mas ficou pior depois que Miranda morreu. Existe algo sobre assassinatos... Quando são com desconhecidos completos então... Não parecem reais. Morte e violência sempre escondidas em algum lugar dentro de nós. Todo mundo já sonhou sobre morrer ou em matar alguém. Depois que você faz de verdade, é fácil se convencer de que toda aquela violência foi apenas um sonho e de que a pessoa que morreu não era uma pessoa de verdade. Então você vivencia situação com alguém com quem você se importa e tudo muda.
 – E se você sempre se odiou por matar, como Kaylee, as coisas ficam feias desde o início. – Eu completo, pensando.
 – Imagino que sim. – Ellie diz.  – Todas nós sempre acreditamos que existia um motivo por trás disso tudo. E um motivo bom, a salvação dos vampiros. Mas estar do outro lado faz com que tudo pareça tão vazio.
Suspiro.
 – Você deveria escrever um livro sobre incentivar soldados antes da guerra. – Digo.
Ellie ri, mas parece triste.
 – Eu nem sei porque estou dizendo essas coisas a você. – Ela diz.  – E você sabe muito bem que eu estou amaldiçoada.
 – Kaylee não está. – Lembro.
 – E muito menos está aqui para se defender. – Ela rebate.  – Eu estou falando para você das coisas que eu vi através das minhas lentes.
 – Ellie...
 – Louise.
Eu respiro fundo.
 – Desistir não é uma opção. – Digo.  – Nunca foi. Eu não me importo com o depois ainda. Quero focar em algo para fazer agora. Algo que distraia minha mente de tudo que já está acontecendo.
Ellie balança a cabeça, concordando. Ela vai me deixar para pensar outra vez no que eu poderia fazer nesse meio tempo. Ela quer segurança, mas eu preciso de perigo. Ao menos algo que tenha alguma chance, mesmo que pequena de dar errado e me deixe na ponta dos pés. Como a viagem de Juliana.
 – É ISSO! VIAGEM! – Digo, dando um soco no ar.
 – O quê? – Ellie pergunta, surpresa com meu movimento repentino.
Mas eu já estou na metade do caminho até a escada, em busca de Naomi.

8 de abril
Naomi
Depois de toda discussão de “Vocês precisam de uma bruxa”, “Vocês não podem levar nenhuma das bruxas”, “Vocês precisam de alguém que dirija”, “É melhor não ir de carro”. Eu finalmente tenho tempo de fazer as malas. O que quer dizer enfiar tudo que eu trouxe na mala e esperar no andar de baixo até o resto da trupe de viagem fazer o mesmo.
Encontro Kat andando em círculos, com a preocupação estampada no rosto, enquanto Kaylee brinca com correntes de ar do lado de fora, afastando e aproximando nuvens. Tatiana e Olívia também estão na sala, mas a maior parte do Exército continua no andar de cima.
 – Kat, você vai acabar me deixando nervosa. – Aviso, fazendo suas mãos voarem até o pingente de esmeralda com o susto. – Vai correr tudo bem.
Ela me lança um olhar cansado.
 – Você não sabe nem da metade, Naomi. E não sabe a sorte que tem por isso.
 – Eu imagino. – Resmungo.
Eu sabia desde o começo que não queria saber o que vai acontecer. Ver o futuro – e ainda por cima, um futuro imutável  – tira completamente o controle sobre as únicas coisas que gostamos de fingir controlar. Mas, de alguma forma, apenas as videntes parecem não ver a si mesmas como abençoadas.
Isso é apenas um item na longa lista de coisas nas quais eu discordo de Kat. Por isso eu aceitei a viagem tão prontamente. Preciso de um tempo longe dessa confusão, mesmo que seja uma semana.
 – Vamos repassar o plano. – Kat anuncia assim que todos os participantes da viagem (eu, Louise e Tatiana) estão prontas no andar de baixo  – Vocês pegam o trem até Bucareste. O avião de Bucareste até Viena amanhã cedo. E novamente o trem de Viena para Graz amanhã à noite. Passam dois dias em Graz organizando tudo que a gente precisa e enviam por correio. Fazem o mesmo caminho de volta. E chegam aqui antes do dia 16.
 – É, nós não vamos esquecer dessa parte com as passagens em mãos, Kat. – Louise comenta, balançando o celular.
 – Só quero garantir que tudo saia como planejado. – Kat anuncia – E, se não sair, eu preciso que vocês me informem assim que as coisas mudarem.
 – Por que você está agindo como se nós tivéssemos acabado de entrar no Exército? – Louise reclama  – Sabemos o que fazer, confie em nós.
 – A menos que você ache que tem motivos para não confiar. – Tatiana completa, dando de ombros.
Kat a encara. Depois olha para cada uma de nós, uma de cada vez, antes de dizer:
 – Se eu achasse isso, manteria as três por perto. Confio em vocês. E nas decisões que tomam. – Ela parece estar olhando através de mim quando diz:  – Não traiam essa confiança.
Vejo Louise concordar com a cabeça imediatamente, mas Tatiana e eu olhamos para Kat com curiosidade por mais alguns instantes. Depois de uma troca de olhares confidente, concordamos também.
 – Fez a lista com tudo que precisamos pegar? – Pergunto.
 – Está no seu e-mail. – Ela diz, com um sinal com a mão – Se lembra onde está tudo?
 – Talvez melhor do que você, considerando que eu organizei tudo na última vez que estivemos lá.
 – Os rituais? – Ela insiste.
 – Eu sou a última das Bruxas Petry a viver. – Digo, puxando de dentro de mim algum tipo de orgulho  –  Não tem nada ali que meu sangue não acesse.
 – Não seja confiante demais. – Katerina pede.
 – Eu nunca sou. – Respondo.
 – Se as duas já terminaram o toma-lá-dá-cá familiar, o táxi para a estação está lá fora. – Olívia anuncia, de onde está, olhando pela janela de vidro.
É automático: Antes de nos organizamos para sair, olhamos uma para as outras e tocamos nossas pedras. Não estamos todas aqui, mas as que estão, se despedem assim. É o momento em que todas nós nos comunicamos e nos sentimos uma só, mesmo que sejamos essa versão bizarra do Exército. Eu guardo a imagem em uma espécie de bagagem imaginária antes de pegar minha bagagem real e deixar a casa de vidro.
Já estou na varanda, entregando a mala para o taxista, quando Kat toca meu cotovelo e pede, depois de um momento longo demais de hesitação:
 – Se você vir alguma bruxa, não fale com ela. Não coloque nosso legado em risco, Naomi.
Eu suspiro e coloco minha mão sobre a dela.
 – Você não precisa se preocupar com nosso legado.

12 de abril
Kaylee
 – A magia é formada de energia positiva e negativa.  – Persephone parece em um mundo próprio enquanto diz isso, sem olhar para mim.  – Pode criar e destruir. Criar em meio a destruição. Uma boa bruxa tem os dois tipos de energia dentro de si. Uma bruxa talentosa sempre mantém as duas em equilibro. Uma bruxa poderosa sabe o modo certo de usar cada energia.
 – Essa é a parte fácil. – Sophie diz, em resposta ao discurso de Persephone. – A parte difícil é saber diferenciar as duas energias quando elas borbulham dentro de você.
 – Mesmo? – Persephone diz, erguendo a sobrancelha na direção de Sophie. – Não acho isso tão difícil.
 – Você nunca foi uma criatura infernal. – Sophie responde.  – Quando sua existência depende de energia vinda direto do princípio de todo mal, é difícil voltar à pura energia que emerge da sua alma.
Resolvo interromper o bate-e-volta.
 – E toda alma possui energia pura? Nenhuma delas é ruim? – Pergunto, olhando para Sophie.
Estamos andando pela floresta, procurando um ponto de estudo. Todas as vezes que saímos para estudar, nós vamos a um lugar novo, tentar brincar com diferentes partes da natureza e nos conectar com elas. Como as três bruxas da profecia, passamos o tempo inteiro juntas, estudando, nos preparando. É o meu treinamento, mas é revelador para as três. Bruxas de linhagens diferentes sempre têm coisas a compartilhar que as outras não sabem. E nós não poderíamos ser mais diferentes.
 – Não, eu acho que existem almas obscuras no mundo. – Sophie responde, depois de ponderar. – Mas uma bruxa que quer fazer grandes coisas não pode se dar ao luxo de ter uma dessas. Pense na mãe de Kat, por exemplo.
Algo parecido com refluxo sobre pelo meu esôfago. Sensação ridícula de se ter quando seu sistema digestório é a única parte do seu corpo que não precisa funcionar.
 – Almas sombrias não podem fazer grandes coisas. Anotado. – Digo.
 – Se você está preocupada com a sua alma... – Persephone começa, mas se interrompe e para de andar. – Algo aqui não está certo.
Sophie pisca e olha em volta. Eu sou a mais confusa das três. Formo uma pergunta para Persephone, mas antes que eu consiga dizer qualquer coisa, ela empalidece. Em seguida, começa a correr.

Valentina
 – VALENTINAAA! – Você não acharia que apenas um grito causaria a vibração de um tornado em uma casa de vidro, mas isso é quanta magia Persephone coloca na pronúncia do meu nome.
Desço as escadas por medo de que a casa caia e encontro a bruxa vidente na entrada da casa, me esperando com fúria no olhar.
 – O que eu fi-? – Começo.
Mas sou rudemente interrompida:
 – Onde você colocou?
 – Você precisa ser mais específica. – Respondo.
 – A magia dela corre nas minhas veias, Valentina. Não se faça de sonsa.
E eu desisto mesmo de ser sonsa:
 – Ah, onde eu coloquei ela. – digo  – Eu sou melhor em esconder fontes de poder que você, então eu não posso dizer.
 – Quem você pensa que é para fazer algo assim? – Ela me acusa.  – Desrespeitar o corpo da minha mãe! Uma bruxa poderosa! A poucos quilômetros de sua terra natal!
 – Alguém que não tem nada a perder?
 – Valentina.
 – Persephone.
 – Eu vou perguntar outra vez. – Ela diz, um aviso.  – Onde está?
 – Onde eu preciso que esteja. Eu posso devolver assim que terminar com a magia, mas por enquanto, eu preciso dela.
Os olhos de Persephone estão cheios de lágrimas. Eu nunca a vi assim e pensei que nunca fosse ver. Antes que eu possa perceber, estou flutuando. Seus lábios de movem em um canto e eu sou tirada do chão. Quanto mais me aproximo do seu rosto erguido, menos ar tenho nos pulmões.
 – Eu não preciso respirar. – Tento dizer, mas percebo que falar é impossível sem ar.
 – Eu não me importo com nenhuma de vocês. – ela diz, sob a própria respiração – Mas eu não torturei Naomi ou Olívia, porque sempre soube que perderia meus pais naquele dia. E eu não destruo os planos de vocês, mesmo que eu pudesse fazer isso facilmente, porque eu nasci para guia-las. Eu não fujo do meu Destino. É uma das coisas que são sagradas para mim. A outra é a minha família. Tocar no corpo santificado da minha mãe para conseguir poder para algum dos seus planos mesquinhos, foi a coisa mais estúpida que você já fez em toda a sua vida. E você pode ter certeza de que vai pagar por isso.
Ela me deixa cair e quando o ar volta a circular pelo meu corpo, meu cérebro parece em chamas. A agonia me cega, mas eu pego fôlego novamente para dizer, do chão:
 – Você não deveria ter contado um segredo tão grande para alguém que tem uma sombra do mal.
 – Miranda ficaria tão decepcionada em saber que você fez algo assim. – Persephone incita – Ela queria magia pura, não magia roubada.
Eu pulo do chão para erguer o dedo na cara dela.
 – MIRANDA NÃO SE IMPORTA. – Grito. – Ela está na droga do Inferno. Em agonia. A única coisa com a qual ela se importa agora é em se libertar. E NINGUÉM VAI FICAR NO CAMINHO DISSO.
Sem levar em consideração os pingentes de lágrimas em seus cílios, o rosto de Persephone é completamente uma máscara aterrorizante de batalha.
 – O que faz você pensar que o seu sangue é mais importante que o meu? – Ela sibila.
 – Ele é para mim. – lembro a ela – Meu sangue é a única coisa que importa para mim no momento.
Percebo Kaylee e Sophie chegando pela floresta, confusas com toda a situação. Persephone funga e murmura alguma coisa em um romeno tão antigo que nem eu consigo compreender. Eu me pergunto se é outro feitiço, mas depois de me olhar de cima para baixo, ela seca os olhos e sai em direção às outras bruxas, dando as costas para mim.

14 de abril
Graz, Áustria
Tatiana
O celular de Louise vibra sobre a mesa. Eu me pergunto se é a décima quarta ligação de Kat hoje, mas a forma como o rosto dela brilha ao olhar para a tela me indica que são boas notícias, finalmente.
 – É o código de área de Paris. – Ela anuncia antes de atender o telefone, já com o nome da melhor amiga na boca: – Juliana.
Enquanto elas trocam as novidades sobre as viagens de ambas, eu saio da cozinha e vou para a Sala Secreta. Paro na soleira da porta quando encontro Naomi sentada no chão lendo um livro antigo com a ajuda de uma faca para guiá-la pelas linhas.
 – Encontrou algo? – Pergunto.
 – Você não faz ideia. – Ela responde, sem olhar para mim.  – Minhas antepassadas fizeram de tudo, até as coisas mais obscuras... Especialmente as coisas mais obscuras.
 – Então provavelmente existe algo sobre o feitiço. – Eu incito.
 – Existe. – Naomi concorda. – E eu sabia que Kat tinha um bom motivo para me pedir para não falar com nenhuma bruxa na região.
Olho para a cozinha para ver que Louise ainda está ocupada no telefone, e entro na sala, fechando a porta atrás de mim.
 – Me conte tudo. – Peço.
Naomi assente e começa:
 – Em 1612 a bruxa herdeira das Petry engravidou de um bruxo do clã Bátori. Eles queriam se casar, mas a mãe dela não permitiu. Então eles fizeram um feitiço que ligava seu sangue, para que eles pudessem ser ligados pela magia, já que não podiam ser unidos pela lei. O problema é que o feitiço só poderia ser feito com mortos, o que fez com que os dois acabassem morrendo, mas não o bebê. Ela foi trazida à vida pela avó com a adaga que eu seguro nas mãos – o nome dela é Ezerbert, como a da criança que ajudou nascer  – e daquele dia em diante, os dois clãs estavam ligados.
 – Então, você e Kat fazem parte de dois clãs antigos? – Digo, ainda confusa.
 – Não. – Naomi balança a cabeça – É esta a questão. Em algum momento, os sangues se dividiram outra vez. E não se dividiram como os dos herdeiros de Deyah; se dividiram de forma definitiva, como se nunca tivessem se misturado. E é exatamente isso que eu preciso descobrir como aconteceu.
A observo. Seus olhos – olhos Petry, verde-folha  – estão febris e encantados com seu plano.
 – Você realmente vai fazer isso? – Pergunto.
Naomi olha para mim, finalmente.
 – Não me decidi ainda. – diz - Mas eu quero essa opção. Eu mereço esta opção, assim como você.
 – Eu me arrependo de ter dito a você que queria ter tido uma opção. – Digo, suspirando. – As coisas são diferentes agora, Naomi. Eu quero a liberdade e a vida eterna plena.
 – E você acha justo que não tenhamos uma escolha? – Ela diz, exasperada. – Todo mundo tem algo a dizer. Tem escolhas a fazer. E nós não, apenas porque somos malditos soldados? Kat vive dizendo que não acredita em batalhas impossíveis, mas para nós “é tarde demais para decidir”. A única coisa que Kat prometia era o direito de controlar nossa própria vida e a liberdade. E é isso que significa para mim. A escolha de estar fora disso tudo. De desertar. De desistir.
Respiro fundo. Com a intensidade das suas palavras, Naomi acabou abrindo um pequeno corte em seu braço. Ela não parece perceber, mas meus sentidos estão tão aguçados pela sede que é como se a sala toda fedesse a sangue de vampiro. É claro que muito sangue de vampiro já foi derramado aqui, de qualquer forma.
 – Eu não vou tentar mudar sua cabeça sobre isso. – digo – E eu fico feliz que você confie em mim para contar seus planos, que confie em alguém do Exército. Mas você sabe que Kat provavelmente já sabe, certo?
 – Apenas se eu sou uma das seis que ela perderá.

Piatra Neamţ, Romênia
Charlottie
 – Mais! – Digo, colocando o copo na frente de Kaylee, que me serve prontamente.
É meu café da manhã de aniversário, ou algo do tipo. Dois dias depois da data e só com a parte do Exército que segue viva e na Romênia, mas já que estou sendo consolada com quanto sangue – frio, vindo de bolsas e velho – eu quiser, eu não me importo tanto assim.
 – Eu sempre me perguntei se era possível ficar bêbada de sangue. – Olívia comenta, se sentando ao meu lado.
Estamos do lado de fora da casa, todas sentadas na varanda, aproveitando o sol que hoje brilha em um céu sem nuvens.
 – Eu não estou bêbada. – Digo, rindo ao pensar que é exatamente o que uma pessoa bêbada diria. – Estou eufórica. Mas respondendo sua pergunta, é possível. Só se alimentar de alguém bêbado. Nós fazíamos com tanta frequência na Rússia. Era incrível.
 – Ei, talvez você seja a pessoa certa para me ajudar a completar o vácuo nos diários de Kat. – Olívia diz, mudando o assunto. – Existe menos informação sobre os anos passados na Rússia do que os anos passados em Cianne. E todo mundo só fala sobre de relance.
 – Porque nada aconteceu. – Respondo, dando de ombros. – Nada relacionado com a guerra ao menos. Pierre estava de volta e nós precisávamos adaptar Tatiana a ser uma vampira sem que descobrissem sua identidade. Fizemos as coisas mais insanas nesse período. Usamos todos os recursos vampíricos para cometer os assassinatos mais violentos e escaparmos ilesas. Era a existência vampírica da forma mais desejada pelo Inferno. Por isso não querem falar muito sobre o que aconteceu. E era perigoso demais manter registros do que fazíamos.
Olívia aperta os olhos enquanto olha para mim.
 – Foi por isso que vocês nunca tentaram sair da União Soviética, não foi? – Ela diz. – Vocês estavam se divertindo demais.
 – Você sabe quão difícil era sair da União Soviética? – Digo, a resposta oficial.
 – Definitivamente não mais difícil do que sair de uma cidade dominada por bruxas. – Olívia responde. – Ou que ficar multimilionária em uma série de golpes.
Pondero o que ela diz e em seguida dou de ombros.
 – Talvez você esteja certa. Nós nos divertimos tanto antes de 98. Era uma existência infernal, é claro, mas droga, ela era divertida.
Eu percebo que o resto do Exército ficou quieto de repente e ouviu minhas últimas palavras. As meninas parecem concordar comigo. Enquanto eu termino minha xícara de sangue, eu percebo eu isso só aconteceu porque Kat não está mais na varanda. Antes que eu formule a pergunta de seu paradeiro, ela reaparece, atravessando a porta de vidro.
 – Louise me ligou. Juliana está voltando. E trará Alexandra e o parasita demoníaco com ela.

16 de abril
Graz, Áustria
Louise
Assim que o e-mail de confirmação da alteração nas passagens chega, eu fecho o notebook e me levanto para arrumar a mala. Preciso me sentar outra vez assim que faço isso. Estou me sentindo extremamente fraca hoje. É o cansaço da viagem, combinado à falta de sangue e à excitação por Juliana ter entrado em contato e finalmente estar voltando para a Romênia. Eu queria ir para casa também, o mais rápido possível.
Nós deveríamos ter voltado há alguns dias, mas Naomi encontrou um grimório antigo que considerou importante e decidiu ficar por mais tempo para avaliar se deveria levá-lo ou não. Combinamos de voltar ontem, mas novamente Naomi pediu para ficar.
Eu podia ouvir a apreensão na voz de Kat quando expliquei tudo a ela por telefone, mas por algum motivo ela não reclamou ou ordenou que voltássemos imediatamente. Mais tarde ela ligou para Naomi e as duas conversaram por cerca de duas horas, com Naomi enfurnada na Sala Secreta.
Tudo parece suspeito, mas eu tenho mais com o que me preocupar. Contanto que não me culpem por qualquer coisa que aconteça nesta viagem, que foi minha ideia, cada uma pode fazer o que quiser.
Quando finalmente reúno forças para me levantar e ir arrumar minha mala, encontro Tatiana andando em círculos pelo antigo quarto de Kat, onde estávamos dormindo. Ela está resmungando e enrolando e desenrolando o dedo na corrente de seu colar de almandina.
 – Algum sinal de Naomi? – Pergunta, quando eu entro.
 – Eu nem sabia que ela estava desaparecida. – Digo.
Tatiana para de andar e aperta a pedra no pingente com tanta força que seus dedos perdem o resto da cor.
 – Desde ontem à noite. – Ela explica – Ela saiu à meia noite e hoje de manhã não estava aqui.
 – Por que ela deixou a casa tão tarde? – Pergunto.
 – Foi encontrar uma bruxa na cidade. – Tatiana diz, hesitante.
Congelo onde estou, prestes a abrir minha mala.
 – A coisa exata que Kat pediu que ela não fizesse?
Tatiana suspira e se joga na cama frágil, que solta um gemido.
– Naomi vinha procurando essa bruxa desde que chegou a Graz. – Ela diz. – Ela tem uma ideia na cabeça, Louise e eu tenho a sensação de que ela está prestes a colocar ela em prática.
Me sento também. Não apenas porque eu acho que o que ela está prestes a me contar vai me causar um choque, mas porque outra onda de tontura e náusea me atingiu. Eu não me sentia assim desde que era humana e começo a me preocupar com a intensidade da sensação.
 – O que vocês não estão me contando? – Pergunto, fechando as mãos em punho para me concentrar.
Tatiana hesita. Não porque parece notar algo de errado, mas porque deve ter feito uma promessa a Naomi. O tempo suficiente para que eu pare de ver estrelas se passa até que Tatiana resolve que é um tempo desesperado e ela precisa tomar decisões desesperadas e me conta absolutamente tudo que Naomi contou a ela. O plano de quebrar o feitiço e desconectar seu sangue do nosso ou pelo menos descobrir como fazer isso para ter uma vantagem sobre o resto do Exército e a opção de fugir e desistir da guerra que nos dizem diariamente que é impossível desertar.
 – Ela quer fazer as pazes com o Inferno? – Pergunto, quando Tatiana se cala. – Levantar a bandeira branca e seguir em frente como uma vampira completa?
 – Se isso a mantiver viva e segura, é possível. – É a resposta que recebo. Quando eu reviro os olhos, Tatiana completa:  – Ela nunca teve a chance de escolher, Louise. Ela disse a Kat que queria uma vida simples e segura e Kat deu de presente a ela o exato oposto. Ela tem o direito de se sentir sobrecarregada pela guerra e querer uma opção.
 – E por que ela não nos disse exatamente isso? – Pergunto. – Com ou sem opção, durante todo esse tempo, cada segundo desde que ela foi transformada, ela foi nossa irmã. Nós estávamos nessa juntas, mesmo com medo. Se ela queria encontrar uma forma de fugir, seja do feitiço, da guerra, de Persephone, do Inferno ou do que quer que fosse, nós deveríamos fazer isso juntas.
 – Isso é fácil de dizer como alguém que sabe o que uma família significa. – Não percebi Naomi chegar, mas é ela quem diz isso. Ela vai até sua mala e a abre sobre a cama, falando enquanto joga seus pertences lá dentro. – Eu não soube enquanto sentia e não sei agora. Estou ligada a vocês, por sangue e por feitiços, mas não da forma natural e automática em que você é ligada a Juliana, em que Kat é ligada a Ellie ou até como Kaylee era ligada a Amelie. O mundo como conhecemos está acabando, Louise. Eu não devo a vocês toda minha lealdade apenas porque o sangue de Kat corre nas minhas veias.
 – Então você vai embora, vai desertar da guerra que libertaria sua alma do Inferno, simplesmente porque não encontrou amor? – Eu acuso.
Naomi suspira. Soca uma calça jeans dentro da mala e fecha de uma vez só.
 – E se eu for? – Ela provoca.
 – Eu não posso parar você. – Respondo. – Mas esse é um feitiço poderoso, Naomi.
 – Se você está preocupada com você, eu não vou permitir que nada aconteça. – Ela responde – O processo de quebra começou há a metade de um dia e toda vocês estão vivas.
Antes que eu diga qualquer coisa, ela coloca a mala no chão e olha para Tatiana, prestes a dizer algo. Sua confidente tem os olhos escuros sem foco, observando o nada. Ela não retribui o olhar de Naomi, o que faz com que a desertora desista de dizer a ela o que quer que seja.
– Não esqueça de fechar minha casa ao sair. – Naomi diz, agora olhando para mim – Diga a Kat que os Bátori mandam lembranças.
Não respondo a isso e ela deixa o quarto. Assim que o faz, Tatiana finalmente olha para mim. Seu rosto está pálido e seus olhos muito claros. Ela sabe que eu sou a única que conhece o feitiço.
 – Ela está matando a todas nós, não está?
Ao invés de responder, pego meu telefone.

Piatra Neamţ, Romênia
Olívia
O telefone de Kat toca sobre o sofá, mas ao invés de atendê-lo, ela vira a tela para Sophie. A bruxa se sobressalta, mas apenas concorda com a cabeça e se levanta, junto com Kaylee. Nenhuma palavra é dita antes que elas se sentem juntas no chão formando um círculo, e fechando os olhos, comecem um canto.
Por algum motivo, todas as oito integrantes que restaram no Exército estão no mesmo lugar, a sala da casa de vidro, o que nunca acontece a menos que haja um motivo. Todas nós estamos espalhadas entre sofás e tapetes, cochilando, mexendo distraidamente no celular ou lendo alguma coisa. O meu motivo é estar me sentindo tão fraca que o simples pensamento de sair da casa me deixa exausta. A mesma sensação parece abater todo mundo, eu percebo quando as ações das duas bruxas no meio da sala não causam mais do que movimentos curiosos de cabeças.
O canto das bruxas parece me ninar e meus olhos fecham lentamente. Anika está deitada ao meu lado e uma arfada vinda dela faz com que eu desperte. Abro os olhos para descobrir a sala de vidro escura, como se tivessem cerrado cortinas não existentes. Ao meu redor, todas que estavam deitadas agora se sentam. Eu faço a mesma coisa, mas fico tonta no momento em que me movo e preciso respirar fundo para não desmaiar.
Charlottie é a primeira a ofegar e gritar de dor. Anika faz o mesmo no segundo seguinte  – suas mãos vão para seu rosto e esfregam seus olhos e lábios. Cheiro de sangue é seguido da já conhecida dor refletida em meu corpo. Valentina está sangrando, com cortes abertos no pulso. Ela não grita, mas geme de dor. Kat também sangra, provavelmente há mais tempo do que algumas de nós, mas ela se mantém calada. Seus cortes são maiores e em grande quantidade. Ela não se move, continua sentada em uma poça do próprio sangue. Apenas Ellie, Sophie e Kaylee parecem não atingidas pelo que está acontecendo. Quando finalmente chega até mim e eu sinto duas pinçadas no pescoço, eu tenho tempo apenas de ver Persephone entrar correndo na casa e se juntar ao canto antes que a dor aumente.
Algo parece puxar minhas veias por dentro. Elas se remexem no meu interior, em agonia. Não queimando, como se fosse o Inferno, mas como se a simples ação de transmitir sangue pelo meu corpo fosse mais do que elas pudessem suportar. Minhas mãos vão perdendo as forças e meu corpo inteiro se rende à dor. A última coisa que acontece antes da perda de consciência é o som. A batida de um coração. Não o meu coração ou o coração das meninas, mas um coração só, com a força das treze – até mesmo de Miranda. Batendo e batendo como se fosse a única coisa que existisse no mundo. E então tudo se cala.

Graz, Áustria
Tatiana
O mundo parece mais colorido quando eu abro os olhos. Mais colorido como em uma explosão de cores sem forma que parece atravessar os olhos e ir direto para o meu cérebro.
Respiro fundo para recobrar a consciência completamente e me surpreendo em não me sentir tão cansada como me sentia antes de desmaiar. Ao meu lado, Louise, que também caiu no chão, está desacordada, mas respira. A última surpresa vez pela clareza com a qual eu me lembro do que aconteceu.
Antes que a ligação de Louise para Kat fosse atendida, ouvimos um grito vindo da cozinha. Nós íamos correr para ver o que acontecia quando duas feridas se abriram no meu peito e na cabeça. Elas doíam como no dia em que foram feitas pela primeira vez. Feridas se abriram no pescoço de Louise também e conforme o sangue caía no chão nós sentíamos a dor uma da outra e de qualquer outra de nós que estivesse sangrando.
Essa lembrança me faz olhar para baixo. O pingente ainda está preto, mas eu consigo ver a nuvem escura diminuir e o vermelho normal retornar. Isso provavelmente significa que o feitiço ainda está ativo, nos ligando. Então o que exatamente aconteceu?
Ao me dar conta de que o grito foi de Naomi, eu corro para a cozinha. Não a encontro lá, mas ela não deve estar longe já que deve ter acordado pouco tempo antes de mim. Ouço os sons de Louise se levantando e me preparo para correr atrás de Naomi, mas antes que possa fazer isso eu vejo algo que me paralisa.
Me abaixo e pego os pedaços entre os dedos, tentando descobrir como aconteceu e onde Naomi foi parar. Louise entra na cozinha correndo e para do meu lado, tão surpresa quanto eu. Topázio não é uma pedra que quebre fácil. E um pingente enfeitiçado que se liga ao sangue de quem o carrega definitivamente não quebra desse jeito sem causar alguns danos.