“A manhã se dá a todos —
Para alguns — a Noite
A raros afortunados —
A luz da Aurora.”
Emily Dickinson (Morning is due to all)
As Crônicas de Kat:
E não sobrou nenhum

Bucareste, Romênia
5 de maio de 2016
Charlottie
Para um vagabundo ermitão a sensação de casa pode ser como o desejo de voar. Inalcançável, mesmo quando muito real. Desde que precisei fugir de Verdant para o mais distante possível de Sophie, eu só senti isso – a calma sensação de acordar embaixo de um teto, cercada por coisas que são minhas, sabendo ao deixar o quarto eu serei recebida por pessoas importantes para mim – duas vezes. Uma em Nova Orleans. A segunda no antigo hotel abandonado no subúrbio de Bucareste, para onde nós finalmente voltamos.
Depois que consigo me convencer a abrir os olhos e virar de barriga para cima na cama confortável e quentinha, eu fico encarando o teto desbotado por um tempo. Embaixo de mim, a casa começa a acordar, os sons preenchendo seus cantos. Somos nós: Kat, Ellie, Sophie, Anika, Valentina, Kaylee, eu, Tatiana, Juliana, Louise, Olívia e Pierre com o acréscimo da irmã mais nova de Juliana, Alexandra. Estamos nos escondendo, ao mesmo tempo que descansamos e criamos estratégias. Treinamos para as batalhas que o Destino nos reserva, enquanto lutamos contra o futuro, nas diversas faces em que ele se apresenta. Especialmente, a profecia.
O pensamento faz com que eu crie coragem para me levantar da cama. Visto um roupão felpudo e pantufas e resolvo ir lá para a sala, enfrentar a série de pensamentos filosóficos que o dia de hoje me reserva. É só isso que eu consigo fazer quando encaro o circo que Kat montou no andar de baixo. Pensar, pensar e pensar. Deixo do quarto e resmungo “bom dias”, enquanto passo pelo corredor. A maior parte de nós passa a maior parte do dia nos quartos ou nos corredores. Evitando a sala e as informações espalhadas pela parede. Espero que alguém me peça para trazer uma bolsa de sangue na volta, mas surpreendentemente ninguém o faz.
No primeiro andar, bato à porta de Sophie, mas ela não está lá dentro. Provavelmente já foi para a cidade. Sophie é assim: se ela pode estar na capital, é exatamente onde ela estará. Não acho que a verei em casa até o pôr-do-sol, mas me pergunto porque ela não me convidou para ir com ela desta vez. Finalmente, chego ao andar de baixo. Vou direto para a cozinha, onde escolho uma bolsa de sangue na geladeira. Litros e mais litros roubados de hospitais no caminho estão tomando a geladeira. Foi divertido, o tipo de ação que precisávamos. Depois de me servir com uma caneca de sangue, volto para a sala e, encostando no balcão, encaro o caos.
As paredes estão tomadas de fotos, imagens e anotações. Como em um filme de espião, Kat organizou tudo pela sala, com marcadores e linhas ligando informações importantes. É uma espécie de apresentação da profecia, se desdobrando diante dos nossos olhos. Foi a forma que Kat encontrou de nos contar tudo, depois de semanas de estudo. Todas as aulas com Rowan não a fizeram descobrir como lutar contra o Destino – videntes desistiram disso milênios atrás – apenas fizeram com que ela conhecesse de trás para a frente cada detalhe de seu futuro.
Bebo um pouco da caneca enquanto olho em volta. Assim como eu, outros tiveram a mesma ideia de observar o caos e tentar encontrar sentido nele: Olívia e Pierre estão em cantos diferentes da sala, observando ou anotando. Kat dorme no sofá, com um livro sobre a barriga e os pés sobre dezenas de papéis. Me aproximo de Olívia e aponto para Kat quando ela olha para mim.
– Ela nunca sai daqui? – Pergunto.
– Nunca a menos que alguém a arraste, literalmente. – Olívia responde.
– Ela sabe que nós preferimos que ela não enlouqueça antes de descer ao Inferno não sabe?
– Talvez seja tarde demais. – Olívia completa, dando de ombros.
Não há como responder a isso. Parada ao lado de Olívia, começo minhas observações pela parede que conta a história do que já aconteceu até agora e do que acontecerá. Em detalhes. De acordo com um calendário lunar detalhado por uma vidente no século passado, estamos no limbo. O próximo evento é “O Dia em que o Fogo subirá da Terra aos Céus”. Nós devemos estar descansadas, relaxadas e bem alimentadas para garantir que estejamos preparadas para o que quer que signifique.
– Algum chute? – Olívia pergunta ao me ver encarando o calendário.
– Pode ser qualquer coisa. Alguém pode fazer uma fogueira na estrada e uma de nós a encontramos. Pronto. O fogo subiu da Terra aos Céus. E no dia seguinte... – Me interrompo e olho para trás.
Na parede exatamente atrás de mim estão presos treze retratos, espalhados na forma de uma árvore. Cada um deles possui um título pregado acima. Se o significado do título é claro, uma folha de papel está presa ao lado do título o explicando. Abaixo do retrato estão pregadas outras folhas de papel, arrancadas dos diários, explicando o que cada uma das pessoas retratadas fez ou fará em um futuro próximo. Cinco retratos possuem uma folha de papel acima dessas todas, e um destino está faltando – a última pode ser qualquer uma das oito restantes. Esses papéis foram escritos em vermelho e chamam atenção de qualquer pessoa que passe os olhos pela sala. Eu encaro A Irmã e ela me encara de volta com desafiantes olhos castanhos.
– Você parece resignada. – Olívia diz, simplesmente.
– Não posso lutar contra o que eu não sei o que é. – É minha resposta. – “E uma sombra ganhará um propósito.”. Não poderiam ser menos específicos se tentassem.
– Persephone diz que vai fazer sentido, um pouco antes de acontecer.
– Isso é inútil. – Bufo.
Atravesso a sala e paro diante da minha foto, olhando para as palavras que disse e as que evitei: “E uma sombra ganhará um propósito. De tocar A Intocável, destruindo A Irmã.”. Nenhuma palavra disso está escrita no destino d’A Intocável. Sophie. Sou um acidente de percurso, mas meu destino chega ao fim, pelo dela. Percebo, de repente, que o fim não importa. Ele não pode ser parado e vem quando quer. Arranco a folha sobre minha morte da parede e a transformo em uma bola em minha mão.
Uma profecia diz que eu morrerei antes do dia 30 de setembro. Grande coisa. Não é a minha primeira morte anunciada.

21 de maio
Kaylee
Acordo sentindo algo peludo acariciar meu pé. Estou sonolenta demais para compreender a situação e reagir, mas sinto o movimento novamente e me sento na cama. Grito quando vejo algo se mexendo sob minha coberta, mas assim que me levanto e puxo a coberta da cama, o bolinho de pelos já está se metamorfoseando em vampira novamente.
– Sério, Kat? – Reclamo. – Eu achei que fosse um rato.
– Poderia ser um rato. – Kat diz, fazendo um sinal amplo para o quarto.
Resolvo ignorar isso. Kat olha em volta e percebe meu robe pendurado uma cadeira, vai até ele e o veste. É tão longo que arrasta no chão. Kat passa o dedo pela crosta de poeira sobre o assento a cadeira de onde pegou o robe e eu reviro os olhos.
– O que você está fazendo aqui? – Pergunto. – Eu disse que não queria ninguém aqui.
– Não, você disse que não queria nenhum vampiro, bruxo ou humano atravessando aquelas portas. – Kat corrige – Eu precisei encontrar uma brecha.
Reviro os olhos novamente. Só ela faria algo assim.
– E o que você quer tão desesperadamente que precisou fazer isso tudo para me ver? – Pergunto.
– Alguém tinha que ver se você ainda estava viva. Ficamos todas preocupadas com você. – Kat se aproxima e me olha com os olhos brilhando – Kaylee. O que você está fazendo?
– Descansando, como você e Persephone ordenaram. – Me defendo.
– Quem você quer enganar? – Kat pergunta, mas tem os olhos preocupados – Você parece exausta. Eu sei reconhecer um comportamento obsessivo depressivo quando eu o vejo, Kay.
– Eu não estou deprimida...
– Você está enfiada aqui há mais de uma semana. – Kat me interrompe. – E proibiu qualquer ser vivo de interagir com você. Ellie não ouve o barulho do chuveiro vindo da sua suíte há pelo menos cinco dias. Olívia e Anika disseram que ouviram barulhos suspeitos vindo daqui de dentro.
– Eu estava vendo Game Of Thrones. – Justifico. – Por que todo mundo tem o direito de fazer o que quer e eu preciso ser pressionada sobre meus atos?
– Porque eu conheço você. – Ela responde. – O suficiente para saber que você não está bem e nem saudável.
Limpo minha garganta, sabendo que não posso mais negar.
– E daí? Você não é uma terapeuta. – É quase um desafio.
– Li o suficiente sobre psicologia moderna. – Kat dá de ombros e se senta sobre a minha cama. Quero reclamar, mas acabo me sentando do seu lado. – Eu não quero tratar você ou fazer você falar. Só que a ideia de você enfiada aqui, subsistindo, sem querer sequer tomar banho, me paralisa, Kaylee. Quero que você fique bem. Me importo com você.
– Você não entende. – Digo. – Você não sente.
– Eu vou sentir. – Ela lembra. – Em breve. E se eu me conheço, sentimentos ruins vão fazer com que eu me isole também. Consegue imaginar isso? Eu, completamente sozinha, depois de quase duzentos anos?
Suspiro, odeio a retórica de Kat.
– Vir para cá para descansar me tirou o treinamento. – Digo. – Me tirou o propósito. Fez as coisas ruins emergirem.
– Bem, você ainda sente sua magia? – Ela pergunta.
– Claro que sim.
– Então não tem motivos para ter parado de treinar. – Ela diz. – Continue treinando. Faça plantas crescerem, coloque fogo em coisas ou sei lá o quê. Apenas não pare.
Concordo com a cabeça, mais para fazer ela parar de falar do que qualquer outra coisa.
– Eu realmente achei que você fosse me dar um conselho maluco sobre enfrentar o que aconteceu e seguir em frente. – Eu digo.
O rosto de Kat fica obscuro por um momento. Mais uma vez, ela opta por ser sincera comigo.
– Você sabe o que vai acontecer lá na frente. Talvez o passado seja o lugar ideal para estar no momento.
       
3 de junho
Tatiana
Acontece de novo. Eu acordo, no meio da noite, com o coração disparado e suando, graças a um pesadelo do qual eu não me lembro. Como aconteceu nas noites anteriores, eu me sento na cama e estico as pernas sob o cobertor. Controlo minha respiração devagar e em seguida fecho os olhos tentando me lembrar de alguma coisa. Nada volta, então, como um fantasma, eu visto meu robe e vou até a janela, abrindo-a e sentindo o cheiro do orvalho enquanto espero o nascer do sol. O tom de vermelho vivo que o nascer do sol tem na hora em que eu acordo me lembra da profecia.
Depois que encontramos o pingente de Naomi despedaçado no chão e nenhum sinal dela, Louise e eu quisemos procurar por ela na cidade. Um pressentimento (literalmente), avisou a Kat de nossos planos e ela ligou ordenando que não procurássemos por sua prima. O sumiço de Naomi estava escrito na profecia e nós não poderíamos fazer nada a respeito. A última coisa que Kat precisava é que outra de nós entrasse em contato com as Bátori. Qual a história se passou entre este clã – do qual Kat nunca falou nada, mesmo que o Exército tenha vivido em Graz por grandes períodos de tempo – e as Petry, é um mistério que apenas Kat e Naomi conhecem. E nenhuma de nós se acha no direito de descobrir o que aconteceu.
Apesar disso, eu não consigo esquecer Naomi e focar na minha parte da profecia. Ela era A Prometida, aquela que viera para que o destino do clã de Kat fosse completado... E então, ela desistiu. Foi embora. Como se nada mais tivesse acontecido. Sei que existe algo que Kat sabe e não está dizendo. Algo escondido nas frases enigmáticas da profecia, que eu ainda não consegui decifrar. Talvez Naomi ainda tenha algo a fazer na guerra e por isso esteja viva e bem. E talvez ela esteja se destruído tão completamente que não exista mais nem no Inferno.
Um movimento de algo na estrada faz com que a luz do sol reflita diretamente nos meus olhos. Isso acontece sempre que eu fico na janela por tempo o suficiente, mas dessa vez evoca algo diferente, um lampejo do sonho que eu tenho frequentemente. Por um milésimo de segundo, tudo é fogo. Luminoso, quente e colorido fogo que toma o espaço de tudo que eu posso ver. É lindo, atraente e encantador. E não queima. Por mais quente que seja, o fogo não dói. É tão bonito. Meu coração dispara pela atração que ele exerce sobre mim.
E então, acaba. O milésimo de segundo chega ao fim repentinamente e eu estou no meu quarto, fresco e limpo, tomado agora pela luz da manhã. Olhando novamente para o ponto cuja luz refletiu sobre mim, eu percebo que a árvore lá embaixo está queimando. Galhos, folhas e tronco completamente Tomados por Fogo.

15 de junho
Katerina
A porta abre violentamente deixando uma corrente de ar frio invadir a sala quente. Uma sombra esguia cobre a luz da lua por alguns instantes antes que Sophie entre na sala, rindo sozinha e cambaleando.
– Parece que alguém está bêbada. – Comento, do sofá.
Sophie dá um salto, surpreendida pela minha voz na sala que ela imaginava vazia. Quando vê o caderno antigo sobre meu colo, a luz discreta do notebook no sofá e as fotos que eu estava encarando antes da porta abrir, ela me lança um olhar desaprovador.
– Parece que alguém está obcecada. – Reprime.
– Estou me preparando para o futuro. – Eu digo. – É como fui criada.
Sophie cruza os braços, já tendo ouvido essa frase. É a resposta que eu dou para qualquer uma que tente me tirar da sala sem um bom motivo. Desde que voltamos para Bucareste, em maio, e eu transformei a sala de nossa casa em um centro de estratégias de guerra, as tentativas de me arrancar daqui para descansar são frequentes. Mas não vai acontecer.
– O resto de nós também está se preparando, você sabe. – Sophie diz. – Mas a gente não vai conseguir salvar ninguém ou mudar o Destino presas em uma sala escura, encarando as previsões do futuro.
– Então você vai esperar – bebendo e se divertindo – que o destino venha buscar sua irmã? – Pergunto.
Penso que posso ter ido longe demais, mas o rosto de Sophie nem se abala.
– Você esqueceu gastando dinheiro e dançando. – Ela completa, dando de ombros. Em seguida, suspira e atravessa a sala para se sentar ao meu lado. – Eu estou tentando, Kat. Mas não posso gastar todas as minhas energias preocupada com as sombras. Preciso estar forte no dia em que elas se voltarem contra Charlottie.
Sophie tem algo de vulnerável quando diz isso, repentinamente sóbria.
– Você entende porque eu fiz isso, não entende? – Pergunto, sinalizando a sala inteira, com suas paredes cheias de fotos e textos com linhas ligando uma informação à outra.
Sophie não está olhando para mim, mas percebo que seus olhos violeta se escurecem.
– Você queria ser sincera conosco. – Ela responde. – Queria que soubéssemos o que está acontecendo. Para que o que aconteceu com Naomi não se repita.
 – Foi um erro? – Pergunto.
– Não sei. Mas não era o que nós queríamos, Kat. Nenhuma de nós queríamos saber, apenas você. Nem Persephone não leu a profecia e ela é a nossa vidente.
– Persephone não tem interesse algum de lutar contra o Destino... – Começo.
Sophie finalmente se vira para mim.
– E nem nenhuma de nós. – Ela interrompe. – Você precisa entender: Nós buscamos isso. Durante todos esses anos, nossos anos. É muito mais do que apenas nosso sangue, nosso suor, nossas lágrimas. É muito mais que a glória, Kat. Não importa se nós sairemos disso vivas ou mortas. Se o Destino dita que sairemos vitoriosas, é tudo que importa.
– Sua irmã... – Tento voltar a falar.
– Eu só queria poder olhar para ela e não ter que pensar que ela vai morrer a qualquer segundo, Kat. – Sophie diz. – Não ter medo até de mim mesma.
– Você acha que eu deveria parar então? – Pergunto, com sinceridade – Que não tenho chance de vencer contra o Destino?
– Eu aprendi a não duvidar do que você pode ou não pode fazer antes mesmo de ser transformada. – Sophie diz. – A pergunta é, por que você quer?
– Eu quero manter todas vocês protegidas. – Digo. – Não quero que seis de nós sejam perdidas por minha culpa.
– Então faça algo útil. – Sophie responde. – Pense em formas de proteger quem você quer protegida. Não tente lutar contra algo tão abstrato quanto o Destino, quando existem pequenas coisas que você pode mudar aqui agora. Existe um espaço cinza entre aceitar calada e se rebelar contra tudo, Kat.
O cansaço das últimas semanas recai sobre mim. Lembro do que eu disse a Kaylee, sobre não parar e percebo que o mesmo conselho não se aplica para mim. Concordando com Sophie, eu fecho o caderno que está em meu colo e começo a recolher as fotos espalhadas pelo sofá. Estou distraída, pensando em beber uma bolsa de sangue e ter uma boa noite de sono, e quando Sophie me segura pelo pulso, eu quase tenho a reação involuntária de mordê-la.
Sophie arranca a foto que estou segurando da minha mão e com um simples sinal com a mão acende as luzes da sala. Ela encara a foto como se tivesse visto um fantasma e eu me inclino sobre ela para descobrir o que ela observa com tanta intensidade. Na foto em preto e branco, uma família posa na frente de uma árvore no que parece um jardim de uma casa. Não reconheço as pessoas na foto ou o local. Qualquer coisa que tenha chamado a atenção de Sophie, não está ligada a mim. Depois de mais de um minuto de observação silenciosa, Sophie pega o computador que estivera entre nós duas por todo este tempo e começa a digitar algo.
– O que você está pensando? – Pergunto, ansiosa.
– Você já ouviu falar em rowans? – É tudo que ela diz.
A mistura das línguas me confunde, imaginando que ela se refere ao oráculo. Quando olho novamente para a foto, percebo a árvore atrás da família e entendo.
– A árvore que os celtas usavam para se proteger contra bruxas?
Sophie concorda com a cabeça:
– Eu queria me lembrar da rima... – Ela diz, frustrada.
– "Rowan tree and red thread / make the witches tine their speed". – Canto e mesmo sem precisar, traduzo: – Tramazeira e linha vermelha / Faça com que as bruxas percam seu propósito.
Os olhos de Sophie faíscam.
– Sua velocidade, Kat. – Ela diz, tomada de conhecimento repentino. – Faça com que as bruxas percam sua velocidade. Videntes eram consideradas bruxas até o século XII. Suas previsões eram feitiços e maldições.
– Os frutos eram usados para parar o Destino. – Completo seu pensamento. – Impedir sua velocidade.
Sophie ainda está encarando o notebook e me indica uma parte do texto na tela com a ponta da unha.
– A mitologia grega diz que as tramazeiras foram feitas do sangue das águias que foram recuperar o cálice de Hebe de demônios. O céu que sangra e leva até o Inferno. – Seu rosto se ilumina quando ela volta a olhar para mim – Uma pista, Katerina. Precisamos encontrar tramazeiras.
– Não precisamos. – Respondo. – Eu sei exatamente quem possui uma maldita plantação delas.

24 de junho
Eleanor
– Que cheiro é esse? – Digo, assim que desço as escadas.
Vejo logo várias caixas abertas cheias de frutinhas vermelhas e não preciso de resposta, mas ainda assim, Valentina – usando um ramo atrás da orelha para decorar o cabelo – me responde saltitante:
– As tramazeiras que Rowan enviou chegaram.
Sorrio para ela e atravesso a sala para me sentar entre Kat e Sophie.
– Vocês já sabem o que fazer com isso? – Pergunto.
– Rowan disse que ela usa como placebo. – Sophie explica, sem olhar para mim. Ela está entrelaçando alguns ramos escuros no formato de uma coroa e olha para eles com cuidado. – Dê isso a alguém e a pessoa se acredita protegida de algum destino horrível até que ele chegue.
– E vocês acham que isso funcionaria de alguma outra forma além de um placebo? – Digo, cética também.
– Eu estou lendo histórias sobre o uso de tramazeiras há mais de uma semana. – Kat responde, ela olhando para mim – Foi usada para afastar bruxas, para se proteger de feitiços e maldições, para evitar ataques de criaturas malditas e até mesmo para se proteger do inferno. As referências à proteção contra o Destino estão encobertas, cheias de enigmas...
Kat para de falar, mas eu a conheço bem demais:
– E você acredita que isso significa que a Força Regente possui sua fraqueza nessas florzinhas. – Completo.
– Tudo tem uma fraqueza, Ellie. Tudo é destrutível em algum ponto.
Suspiro e olho para Sophie. Ela está colocando a pequena coroa de folhas e frutos que teceu na cabeça da irmã e as duas riem de algo que não ouvi.
– Eu pensei que Sophie tivesse convencido você a não lutar contra o Destino. – Digo, mais baixo. – Ele não é nosso inimigo, Kat. O Inferno é.
– Eu sei. – Kat diz, olhando a mesma cena que eu. – Mas o Destino é a Força Regente e é ele que dita que o Inferno leve Charlottie no dia seguinte ao Dia em que O Fogo subirá da Terra aos Céus. É dele que eu preciso proteger Charlottie. – Quando eu concordo com a cabeça, ela suspira e completa: – No pior dos casos, rowans são conhecidas por protegerem pessoas de sombras.

1º de julho
Juliana
Eu posso sentir no ar que hoje é um dos bons dias. Eu sempre sei. Os dias ruins me deixa indecisa: Devo continuar na cama e evitar tudo ou devo sair daqui o quanto antes e garantir que ela fique bem? Mas os dias bons me fazem saltar da cama com vontade e correr para preparar tudo para ela.
Alexandra fica no quarto do lado do meu, que costumava ser de Miranda. Assim que voltamos à casa, Valentina tirou todas as coisas da irmã do quarto que era dela e disse que Alex poderia tomar o espaço vazio e decorar como quisesse. Quando está em posse de si mesma, minha irmã quase não tem forças para comer, quanto mais sair pela cidade escolhendo coisas para decorar seu quarto. Desta forma, seu quarto é mais uma enfermaria do que um quarto de verdade.
Bato na porta do quarto com delicadeza e a abro com cuidado quando não recebo resposta. Alex ainda está dormindo, fazendo aquele ruído estranho – que não é nem bem um ronco e nem o chiado que doentes fazem – que ela sempre faz quando dorme profundamente. Começo a recolher as roupas sujas espalhadas pelo quarto. Roupas que eram minhas, que compramos no aeroporto ou compramos em Bucareste. Alex estava presa na clínica de fachada, usando há meses a camisola da enfermaria. Ela fedia e o robe estava colado em sua pele. Seus cuidadores se preocupavam apenas em impedir que o parasita se manifestasse, não pensavam em seu bem-estar.
O parasita quase nunca se manifesta. Ele parece descansar constantemente, apenas puxando a energia de Alex, consumindo sua alma, fazendo com que ela se sinta doente, cansada, irritada. Ele é, afinal de contas, um parasita infernal. Quer consumir o corpo de sua hospedeira até destruí-la. Quer apenas se manter vivo.
– Juliana? – Ouço a voz frágil de minha irmã perguntar, depois de um tempo.
– Sou eu. – Respondo, enfiando as roupas na cesta e indo até ela.
Alex sequer abre os olhos. Está pálida e suada, mas ainda parece melhor do que estava ontem.
– Você pode trazer mais algumas daquelas frutinhas para mim? – Ela pede.
Sabia que hoje era um dos bons dias. Meu coração quase pula de felicidade. É estranho. Eu sei que por consumir pouco sangue e não tomá-lo de ninguém à força eu estou cada dia mais conectada com a minha alma, mas a volta de sentimentos tão puros quanto essa felicidade pelo bem estar dos outros não parece natural.
– Você não quer ir comer lá embaixo? – Peço. – Tomar um pouco de sol?
Alex abre os olhos amarelados e percebe que eu estou quase suplicando.
– Talvez mais tarde. – Ela responde. – Comer vai me deixar mais forte.
Concordo com a cabeça e digo que já volto, deixando o quarto. As frutinhas em questão são as tramazeiras que Rowan mandou. Foi Sophie quem sugeriu que Alex comesse algumas, já que mal não poderia fazer. Desde então, é tudo que minha irmã quer comer e as frutas têm mesmo parecido deixá-la mais forte.
Os dois corredores de cima estão vazios e no andar de baixo, só Kat, Ellie, Charlottie e as duas bruxas estão sentadas, mexendo nas caixas de tramazeiras, lendo e fazendo anotações coordenadamente. Pego uma caneca grande na cozinha e volto para a sala, pedindo por algumas.
– Como ela está? – Ellie pergunta, conforme enche a caneca de frutinhas para mim.
– Bem. – Respondo, suspirando. – Apenas cansada, como sempre. Pierre esteve por aqui? Queria que ela descesse hoje e Pierre é o único que a convence de fazer esse tipo de coisa.
– Pierre foi para Bucareste logo cedo. – Sophie diz. – Ele continua não suportando o cheiro das plantas.
É, acho que isso faz sentido.
– E onde está todo resto da casa? – Pergunto.
– Algumas já saíram, outras estão dormindo. – É a vez de Kat responder. – Acredito que Louise ainda esteja lá em cima.
Sua sessão de estudos é tão metódica que até mesmo suas respostas são coordenadas.
– Certo. Irei atrás dela. – Digo, começando a fazer o caminho de volta, mas elas já estão com a cabeça nas frutinhas novamente.
Começo a fazer o caminho de volta, mas ao passar por uma das paredes, noto colada nela uma página de um diário que eu li e que evocou todo tipo de fúria em mim. Arranco a página da parede violentamente e carrego ela para o andar de cima. Alex se senta na cama quando eu abro a porta outra vez. Ela nota que estou abalada, mas apenas aceita as frutas em silêncio. Ela não consegue evitar encarar a folha de papel na minha mão, à qual eu mesma olho, mas sem vê-la de verdade.
Ninguém nunca vem aqui. À exceção de Pierre, que possui uma amizade inusitada com minha irmã, e Louise que gosta de mim demais para não vir ao lugar onde eu passo mais tempo, nenhuma das outras moradoras da casa se arrisca a entrar no quarto de Alex. Isso me surpreendeu no começo – eu achava que a atração da curiosidade seria violenta e que eu precisaria afastar todo mundo de perto de Alex. Depois, começou a fazer sentido.
Não existe bizarrice que o Exército já não conheça ou maluquice exótica que surpreenda qualquer uma de nós. Não existe um bom motivo para que qualquer uma que não seja eu e Louise procure uma cura para Alex e eu sei que a ajuda de Kat, Ellie, Sophie e Kaylee é por boa vontade. Tem muita coisa acontecendo e muita coisa ainda está por vir. Ninguém precisa de mais uma preocupação, algo que não diz respeito ao Destino delas. Então, eu entendo o motivo de ninguém querer vir até aqui.
É por razões parecias que eu nunca quero ir lá embaixo.

17 de julho
Olívia
Com um puxão pela gola da camisa, Louise me levanta e me atira no chão. Dói, mas não tanto quanto costumava doer. De repente, percebo que estou entediada. Dolorida também é claro, mas principalmente entediada e é isso que me faz dizer “Chega” a Louise e terminar nossa brincadeirinha violenta.
– Não existe chega em uma batalha, Olívia. – Louise responde, suada e cansada, mas ainda em posição de batalha. –  Se você pede pelo fim, o que você recebe é a morte.
Senhor, sim, senhor. – Zombo. – Eu estou ficando terrivelmente entediada desse jogo repetitivo. Você é mais alta e mais forte do que eu, sempre consegue me derrubar.
– E você ainda não aprendeu a usar seu peso e altura a seu favor, e é por isso que não pode parar agora. – É a resposta disso até agora.
– Nem para beber alguma coisa? – Pergunto, com um sorriso amarelo.
Louise pondera.
– Se fizermos uma pausa agora, continuaremos depois até depois que o sol se pôr. – Ela responde. – Até você conseguir me derrubar.
– Ei, eu já consegui derrubar você! – Rebato, mas já estou andando de volta para a casa.
– Uma vez! Semanas atrás. Foi mais por despreparo meu do que por preparação sua.
Não posso nem discutir com isso. Tudo que sei é que não vejo essas sessões de treinamento com os mesmos olhos que Louise. Ou talvez, veja. Louise vem para cá para fugir dos estrategistas de guerra, do caos do parasita infernal e de discussões sem sentido. Eu, venho para fugir do tédio e de uma guerra que me deixa confusa. Preciso fazer alguma coisa, mesmo que não ache que algum dia estarei pronta para um embate físico.
Conforme nos aproximamos da casa, notamos um movimento incomum. Para começar, três carros iguais estão parados na entrada dos fundos. Isso já indica que não são visitantes comuns – o que nunca temos. O que quer que seja, nem eu, nem Louise fomos informadas com antecedência. Assim que chegamos à entrada, encontramos Kat e Ellie carregando os carros com alguns dos nossos pertences e com as caixas das tramazeiras que ainda sobraram.
– O que aconteceu? – Louise pergunta quando paramos ao lado do carro onde Ellie arruma as coisas.
– Aí estão vocês! – É a resposta dela. – Corram para pegar o que consideram importante, nós vamos voltar para Piatra Neamţ.
Começo a fazer exatamente isso, mas Louise me segura pelo ombro.
– Você não respondeu à minha pergunta. – Insiste para Ellie.
Ellie lança um olhar desamparado em nossa direção, mas Kat acabou de sair da casa de novo com uma pequena maleta na mão e entende a cena que está acontecendo na mesma hora.
– O parasita se manifestou novamente e começou a clamar por Persephone. – Kat responde. – Disse que apenas ela pode salvá-lo. Ele está morrendo, Louise, e vai levar Alexandra junto. Além disso, quando ligamos para Persephone, ela disse que já sabe o que vai acontecer e quando vai acontecer. Temos que voltar.
– Você está falando da morte de Ch...? – Começo, mas Kat me interrompe:
– Temos até o dia depois da próxima lua cheia. Três dias. Precisamos ir.

Via E81, Romênia
18 de julho
Charlottie
Saímos antes do sol nascer, os três carros cheios dos nossos pertences e de nós mesmas. Kaylee, Ellie e Sophie são as únicas que sabem dirigir e os carros seguem enfileirados pela estrada, feitiços poderosos de camuflagem nos protegendo pelo caminho de volta, como fizeram na ida. O carro de Ellie está com Anika, Valentina, Tatiana e Olívia e eles parecem ser o grupo que segue com mais tranquilidade e silêncio. No carro onde estou, de Sophie, estamos além dela, eu e Pierre, junto com três caixas de tramazeiras no banco de trás. Pierre e Sophie não param de discutir, e quando parecem que estão terminando, Sophie encontra algo a dizer e a briga recomeça. Eu acho que ela só não quer o silêncio. No carro de Kaylee, estão Kat, Juliana, Alexandra e Louise.
Mesmo que um carro inteiro se coloque entre nós, ainda é possível ouvir os gritos do parasita. Ele fala em línguas mortas, depois xinga em romeno, inglês, francês, português e mais outra dezena de línguas que conhecemos. Clama por algo, chora, se desespera. Diz que vai morrer e repete o pedido pela vidente. Se alguém tenta se aproximar ou deixar o corpo da hospedeira mais confortável, solta um chiado, os olhos de Alex escuros e seu nariz sangrando. Então repete gritos e lamúrias, falando em alguma língua que só os demônios entendem. Pierre tentou se comunicar quando ainda estávamos em Bucareste, mas o demônio gritou ainda mais alto, fazendo a garganta de Alexandra falhar. É enlouquecedor. Ninguém sabe se tirar o parasita de Alex vai ou não matá-la, qual a condição de sua alma no momento ou o que é exatamente é esse monstro consumidor. Ninguém procurou saber, porque todo mundo estava preso no seu próprio mundinho ou tentando salvar a mim.
Um arrepio sobe pela minha espinha, e enquanto eu fecho o vidro da janela do carro, eu percebo que o carro finalmente está silencioso depois de duas horas. Sophie colocou uma música tranquila e a ouve baixo para não perder a atenção na estrada ou no feitiço que faz constantemente. Olho para trás e Pierre está dormindo, a cabeça balançando contra o vidro da janela para ficar o mais afastado possível das caixas de rowans.
– Me diga que você não apagou Pierre com um feitiço. – Digo para Sophie.
Sophie ri.
– Bem que eu queria, mas Kat nunca deixa e eu me acostumei a não fazer. – Ela responde – Acho que o cheiro das frutinhas embalou ele ao sono.
Com a menção às frutas, eu faço o que faço constantemente e puxo uma frutinha do arranjo que não tiro do cabelo. Encaro a frutinha como se ela viesse de outro mundo. Tramazeiras possuem frutos vermelhos em forma de lágrima, com uma marca em forma de um pentagrama na base. São firmes e agridoces, mas cedem quando eu aperto com força. Eu faço isso mais uma vez, estouro a frutinha em minha mão e o liquido dentro dela escorre pelas aberturas dos meus dedos, caindo no meu vestido.
– Charlottie. – Sophie diz, ao notar minha expressão encarando a bagunça que fiz. – Não faça nada estúpido. Não vou desistir de proteger você ou sair do seu lado, mas você precisa confiar em mim.
Solto uma risada cruel, mas não digo nada. Sophie sabe que isso não é o suficiente e geme, imaginando o que eu devo estar planejando. Mas eu não estou planejando coisa alguma, estou apenas com frio, mesmo que seja meio do verão, e estou pensando em como os gritos do parasita soam como “dois dias, dois dias, dois dias”.

Via DN2/E85
Olívia
É quase meio dia quando acontece. Um vulto atravessa a estrada e o carro de Kaylee freia bruscamente. Ellie precisa desviar de repente, assim como Sophie, e os dois carros deslizam pela estrada. Eu posso sentir o feitiço de camuflagem se quebrar em mil pedaços, mas não existe outro carro na estrada.
De onde estamos, não é possível ver a frente do carro de Kaylee e descobrir porque ela parou, mas nós não deveríamos parar de jeito nenhum, então Ellie e Sophie trocam olhares através dos para-brisas do carro. Sophie sai de seu carro ainda ligado e Ellie se vira para conferir se estamos bem antes de fazer o mesmo. Mal eu faço um sinal com a cabeça do meu canto, o carro balança com o impacto de algo grande atirado sobre seu teto.
Ellie nem pensa, apenas acelera em direção à floresta às margens da estrada. Dirige apressada, sem olhar para trás, passando por cima de plantas rasteiras intocadas e violentamente arrancando galhos das árvores. Dirige por quase três quilômetros antes de estacionar o carro em um lugar seguro, escondido entre duas grandes árvores. Quando para, fica respirando fundo, controlando algum impulso de sentimento que possui dentro dela.
– Ellie. – Anika chama, do meu lado. Ellie continua respirando fundo, chiando e não diz nada, então Anika repete: – Ellie. Nós precisamos voltar. Descobrir que diabos foi aquilo.
A voz de Ellie soa com um fundo de ódio que eu conheço bem demais.
– Eu sei exatamente que diabos foi isso. – Ela rosna – E nós precisaremos de muito mais que fogo dessa vez.
Quando chegamos à estrada, a luta está no meio. Os carros estão vazios e pegando fogo. Três mulheres altas e musculosas tentam escapar das bombas de fogo que Sophie lança em sua direção. Pierre está torturando mais alguns vampiros, o esforço claramente o abalando. Charlottie escapa de tentativas de segurá-la com a leveza de uma bailarina. Kat usa de golpes que eu nem imaginava que ela conhecia. Louise, Juliana e Alexandra não podem ser vistas em lugar nenhum, mas eu ainda consigo ouvir os gritos do parasita, provavelmente excitado pela batalha. Também não vejo Kaylee.
A pedra em meu colo está pesada, mas não apresenta os sinais de que alguém está sangrando. Percebo que a luta corre bem e junto a Ellie, Anika e Valentina corro para aliviar o peso da batalha de minhas irmãs. Pegando pelo pescoço uma das vampiras que fugia de Sophie, sou atirada ao chão imediatamente. Sequer dói e eu agradeço a Louise, onde quer que ela tenha se metido. Eu repito o ataque uma, duas, três vezes. A mulher acha graça, como se fosse uma brincadeira de criança. Finalmente, uso a leveza da minha mão para roubar a faca que ela tem presa à cintura e depois de golpeá-la nas costas, consigo arrancar a cabeça da mulher de seu pescoço com os dentes. Quando volto a mim, a batalha já está acabando e toda estrada é uma confusão de corpos pegando fogo.
– Bem, eu espero que agora tenhamos acabado com o Clã Romeno. – Sophie brinca, depois de colocar fogo no último corpo torturado, se afastando da estrada para nos ajudar.
– Sinto dizer que eu duvido muito. – Kat responde. – Viu algum dos líderes? – Completa, para Ellie.
Ellie discorda com a cabeça, tensa. Ela tem sangue desde o pescoço até o meio do joelho, sangue dos outros, e eu me pergunto quantas pessoas ela matou nessa batalha.
Andamos para fora da estrada e nos escondemos atrás de árvores. A contagem começa quando Louise e Juliana saem das sombras com Alexandra desmaiada entre as duas. Pierre assume o peso da garota na mesma hora, apesar de ainda estar um pouco machucado. Quando a contagem termina, não encontramos Kaylee.
– Alguém sabe o que aconteceu para fazê-la frear daquele jeito? Nós tínhamos regras. – Kat pergunta, apesar de estar ao lado dela durante a viagem. As outras pessoas que estavam no carro discordam com a cabeça.
– Eu acho que ela viu alguma coisa. – Louise diz, mais baixo.
Sophie ergue a mão para silenciar todo mundo. Passa alguns segundos tentando ouvir algo, nervosa. Quando consegue, suspira.
– Ou alguém. – É o que diz, simplesmente, indicando o caminho que devemos seguir.
Seguimos pela floresta por quase quinhentos metros antes que encontremos uma clareira, em um sentido oposto ao lugar onde o carro de Ellie está. Na clareira, ouvimos a voz de Kaylee, lançando uma maldição em latim, um feitiço antigo. O que capto da frase gritada, ordena que os mortos continuem mortos. Aproveitando meu próprio tamanho novamente, passo na frente da formação do Exército e tento descobrir o que está acontecendo. Kaylee está parada no meio da clareira e diante dela uma figura mediana se curva no chão, tomada por dores explosivas.
– VOCÊ NÃO PODE MATAR O QUE A PRÓPRIA MORTE NÃO QUER MORTO. – A figura em agonia diz repetidas vezes, em inglês.
Eu reconheço a voz e o sotaque antes de ouvir a primeira repetição. Amelie.

Próximo a Bucau, Romênia
19/20 de julho
Valentina
Eu não consigo evitar. Mais de um dia depois, eu continuo encarando Amelie durante todo o caminho que fazemos de volta para o carro de Ellie. Ela está sentada no chão, tem as mãos e os pés presos. O rosto está livre, mas a mandíbula está travada, se recusando a falar. Ela nem parece pálida. Três meses atrás estava morta, sem coração, no chão do cemitério de Piatra Neamţ e agora está viva – ou tão viva quanto eu estou. Eu não acho que teria voltado à vida em 1900 se estivesse sem coração, mas, novamente, você não pode matar o que a própria Morte não quer morto.
Estamos sentadas em círculo próximas ao carro de Ellie, tentando descobrir como vamos levar catorze pessoas em apenas um carro. O dia inteiro foi passado tentando montar a dinâmica disso, mantendo Alex desacordada e Amelie presa. Em uma ligação hoje cedo, Persephone disse que o sangue das que se foram nos deixou mais forte, por isso uma luta física foi vencida com facilidade hoje, mesmo que os membros restantes do Clã Romeno tenham sido treinados pela mesma pessoa que nos treinou e conhecia todos os nossos truques.
Bocejo. Está tarde, eu não dormi ontem e passei o dia inteiro encarando Amelie com ansiedade. Kaylee faz o oposto disso, evitando olhar para seu sacrifício e passando o dia inteiro conversando com Kat e Sophie sobre como levar todas nós seguramente para Piatra Neamţ antes do dia 21 – quando Charlottie está marcada para morrer. A lua cheia brilha ameaçadora contra o capô do carro negro e eu me distraio olhando para esse reflexo. Aprendi a olhar para a lua com medo pelo que seus ciclos significam para a nossa guerra. Batalhas em dias de lua cheia, gritos de guerra em dias de lua minguante, mortes em dias de lua crescente, visitantes indesejados em dias de lua nova. A batalha final na Lua Negra, entrando pelo céu que sangra. Sinto falta de minha irmã. Ela saberia o que significa “o céu que sangra”...
Acordo de repente, a luz da manhã invadindo meus olhos. Me acostumei a dormir sentada no chão duro e quase não me mexer a noite inteira, mas meus ossos ainda reclamam um pouco. O Exército inteiro continua ao meu redor, algumas de nós dormindo, outras – naturalmente, Kat, Ellie, Sophie e Kaylee – acordadas e observantes, conversando e mantendo os olhos bem abertos.
Algo está errado e eu não sei dizer exatamente o que é. Conto quantas de nós somos com cuidado, mas a contagem está certa, não interessa quantas vezes eu a refaça. Quando passo os olhos pelo círculo mais uma vez, eu noto um movimento. Pierre não está dormindo onde estava antes. Ele agora está deitado em uma posição estranha – quadril para cima e braços abertos, com o rosto pressionado contra o chão – ao lado de Alexandra. Ele se mexe apenas um pouco, mas como se convulsionando e solta pequenas lamúrias regulares. Me levanto e me aproximo dele, movida pela curiosidade. As outras acordadas me seguem com o olhar e percebem a movimentação estranha de Pierre.
Toco nele com a ponta do pé e seu corpo se estica para a frente como se estivesse sem vida. Embaixo dele, muito sangue, cujo cheiro toma conta da floresta imediatamente. Todas as vampiras que estavam dormindo acordam ao mesmo tempo e as já acordadas, se colocam de pé. No mesmo segundo, um grito cortante vem de trás de mim e o parasita acorda. Conforme ele começa a falar em línguas demoníacas novamente, o céu escurece, como tomado de fumaça de queimadas. Pierre, apesar de sangrando e desacordado, continua gemendo. O parasita, continua falando. Atrás de onde eu estou, ouço a voz de Ellie gritar, em choque:
– TATIANA!
Quando me viro, Ellie já está ao lado da tataraneta, que caiu no chão, ficando quase na mesma posição que Pierre. Tatiana está suada e convulsionando, com a pele muito vermelha.
– Ela está quente. – Ellie diz, olhando para Kat. Sua própria pele, onde está em contato com a de Tatiana, está cheia de bolhas que se curam logo em seguida, mas devem doer.
Os olhos de Tatiana estão se revirando. Suas respirações são altas e ecoam pela floresta. O resto do Exército está em choque tão absoluto que ninguém mais se move. Em um lampejo de consciência repentino, ela agarra a gola da camiseta de Ellie e puxa seu rosto mais para perto. Tenta falar, mas parece ter algo em seu pulmão. Ellie tenta acamá-la, mas seus olhos escuros aumentam de tamanho e ela consegue dizer, antes de voltar às convulsões:
– Eles estão nos chamando.

Piatra Neamţ, Romênia
20 de julho
Katerina
– TATIANA NÃO DEVERIA MORRER. – Acuso, assim que desço do carro em frente à casa de vidro e sou recebida por Rowan, Selene e Persephone na varanda.
– Olá para você também, Katerina. – Rowan resmunga, revirando os olhos. – Tatiana não vai morrer. Não é para isso que ela foi chamada. E você tem coisas mais importantes com o que se preocupar.
Enquanto o oráculo diz isso, Persephone está atrás de mim dando ordens para meu Exército. “Levem Charlottie para o banheiro, ela não pode sair de lá! Levem Tatiana e Alexandra para o andar de cima e Pierre fica no andar de baixo! As bruxas cuidam dos atingidos! Ellie cuida de Amelie! As outras meninas montam guarda para Charlottie!”. Quero gritar com ela e ordenar que ela pare com isso e me diga imediatamente o que está acontecendo antes de tomar qualquer decisão por mim. Mas resolvo ser racional e levo em consideração o fato dela conhecer o futuro. Olho para Rowan com o maxilar travado.
– O que você tem a me mostrar? – Pergunto, como fazia em nossas sessões de estudo.
Rowan sorri e indica o lado de dentro da casa. Entro na casa de vidro com frustração e sou seguida por ela. Assim que entro na sala, as paredes me mostram um display do céu, escuro como estava em nosso caminho até aqui. No meio do céu, porém, existe uma abertura. Um corte amarelado em forma de cone, que poderia se passar pela luz do sol para quem não prestasse atenção no fato de que neste horário, o sol está do outro lado. A luz é absurdamente clara, mas não ilumina coisa alguma. Não aquece também, o dia está frio como no inverno.
– Isso é a ruptura. – Rowan diz, enquanto eu olho. – Não exatamente, é claro, é um reflexo da ruptura do Inferno em nossa dimensão. Está assim desde as seis da manhã de hoje.
Estou prestes a fazer uma pergunta, quando uma sombra escura do tamanho de um adulto, corta o céu e desaparece na luz da ruptura.
– O Inferno está convocando suas criaturas de volta. – Digo, entendendo na hora.
– Tudo que tenha um pouquinho do inferno nas veias ou na alma. – Rowan confirma. – O que inclui Pierre e Tatiana.
– Você disse que ela não morreria. – Lembro.
– Ela não vai, Kat. – Rowan diz, com um sinal da mão. – Você não entende? O Dia em que O Fogo subirá da Terra aos Céus. Este é o título de Tatiana. O Fogo.
– Eles não pretendiam convocá-la. – Diz uma voz entrando na sala – Foi um erro. Eles esqueceram que Pierre e Tatiana existiam por um instante, tão concentrados que estavam em chamar suas criaturas de volta e fechar a ruptura.
Ellie atira Amelie contra o sofá, soando frustrada e algo mais que eu não identifico imediatamente.
– Como você sabe disso? – Pergunto.
– Digamos que eu estou um pouco lá e um pouco aqui. – Ela resmunga.
É quando eu percebo. Seus olhos entram e saem de foco uma vez por segundo. Sua alma está passando pela ruptura.
– ELLIE! NÃO FAÇA ISSO! – Grito, indo na direção dela.
– Não tente. – Ela responde, esticando a mão para impedir que eu me aproxime. – Eles querem um acordo. Estão propondo coisas àqueles que escaparam, para que eles voltem à proteção do Inferno, mas continuem com parte da liberdade que queriam.
– Não vai funcionar. – Rowan diz, de onde está.
– Ellie, isso é loucura. – Peço. – Não faça isso.
Ellie não me escuta. Seus olhos seguem sem foco por um tempo. Por muito tempo. Tempo demais. Seu rosto se contorce em agonia em alguns momentos, mas volta ao normal rapidamente. De repente, ela volta por definitivo.
– E eles me expulsaram. – Ela bufa. – Espero que Tatiana e Pierre consigam ouvir algo mais. Kat, eles disseram que darão propósito a cada um dos envolvidos na guerra contra a paz na humanidade. A cada sombra que optar por continuar na Terra.
E uma sombra ganhará um propósito. De tocar A Intocável, destruindo A Irmã.
– Mantenha Charlottie e Sophie presas no banheiro. – Digo, decidida – Não deixem que ninguém saia ou que ninguém entre de jeito nenhum. Janelas fechadas, vedem as portas e nada de luz. Tire seus celulares delas. Se conseguirmos manter tudo bem nas próximas 24 horas, veremos o que fazer em seguida.

21 de julho
Tatiana
O som de vidro se quebrando é um dos meus sons preferidos no mundo. Todas as integrantes do Exército têm seu próprio habito destrutivo e este é o meu: Quebrar vidros e ouvir o som agudo que eles fazem ao se despedaçar. Sou acordada esta manhã, ainda entorpecida, com o som de vidro quebrando. Aliás, pelo som da casa de vidro inteira, se despedaçando.
Imediatamente, todo mundo que dormia no andar de cima acorda, e busca desorientado pela fonte da destruição. Todo mundo tem um corte em algum lugar e a dor do meu próprio corte se mistura à dor dos outros. Um choro alto vem do andar de baixo e todo mundo se move automaticamente na direção dele. Sou uma das últimas a chegar na sala e preciso me esticar para ver o que está acontecendo.
No meio da sala, em um círculo sem estilhaços estão Sophie, Alexandra e Charlottie. Sophie chora, alto, com o corpo sangrento da irmã pressionado contra o peito. Charlottie ainda tem os olhos abertos, sem vida, encarando o teto. Alexandra está jogada no chão, acho que ainda respira, mas está cercada de uma substância espessa, escura e nojenta.
– O que você fez com ela?! – Juliana pergunta, se jogando na direção da irmã.
Sophie simplesmente rosna, apertando a irmã com mais força. Continua chorando. Seu choro é tão intenso e suas lágrimas tão profundas, que carregam sua dor para a parte vazia de mim. Ela está nos enfeitiçando. Chorando de forma a fazer com que a dor dela seja nossa também.
– Sophie. – Ellie diz, tentando se aproximar. Seus olhos estão cheios de lágrimas também e se Sophie não parar, Ellie logo cairá em um choro muito mais profundo que o de Sophie poderia ser. – Deixe-a ir.
– SAIAM. – Sophie responde. – SAIAM AGORA.
Saímos. Não há nada que possamos fazer contra ela ou o poder que ela está emanando agora. Ellie puxa Amelie pelo cabelo para o lado de fora, Pierre ajuda Juliana com o corpo inerte de Alexandra e saímos todos da casa, inclusive as donas dela e sua tia. Ficamos do lado de fora, olhando a estrutura da casa de vidro, agora apenas vigas de ferro, uma escada e a estrutura dos pisos. Estamos assustadas, mais do que estivemos em muitas outras situações. Não tememos o Inferno, eles já fizeram conosco o pior que poderiam fazer. Sophie é uma força própria e ela ainda está longe de alcançar seus limites.
Anika e Valentina estão abraçadas a Ellie, que afaga seus cabelos como se buscasse proteção nelas também. Kat encara o interior da casa com os braços cruzados, desafiando eu não sei o quê. A família de Persephone está alheia em um canto, como se não tivessem nada a ver com o que está acontecendo. Kaylee e Olívia estão paradas ao lado delas, as mãos às costas, se movendo nervosamente. Juliana, Louise e Pierre tentam acordar Alexandra de alguma forma. Eu, estou afastada, assustada. As coisas que vi e ouvi no Inferno voltando a mim em pequenos flashs. Cada vez que um deles vêm, eu me sinto cansada, mas logo em seguida, regenerada, como se algo novo existisse em mim. Vejo algo que me faz me virar para Pierre. Ele está me encarando, viu a mesma coisa. Sinalizamos com a cabeça um para o outro silenciosamente. Segredo por enquanto.
Sophie sai da casa, sem o corpo da irmã, depois de quase meia hora e nós nos movemos quase que automaticamente na direção dela. Não sabemos o que mais fazer, então tocamos nossas pedras, em silêncio, como reverência. Sophie tem uma expressão de desprezo. Em um segundo, ela faz um sinal com as mãos e coloca fogo na estrutura da casa atrás dela.
– Sophie! – Persephone finalmente reclama.
Sophie rosna em resposta e se aproxima de Ellie, caindo em seus braços. Ellie entende o sentimento desesperador que atravessa o corpo de Sophie e a consola em silêncio. Não vejo o que mais acontece; sou distraída pelas labaredas que tomam o que restou da casa de vidro.
Grandes colunas de fogo são necessárias para destruir por completo uma casa feita de ferro e vidro. Colunas quentes, cuja temperatura segue aumentando, alimentadas pelos sentimentos intensos e dolorosos de Sophie. Mesmo sabendo que o fogo está quente e sentindo sua temperatura, eu não sinto os efeitos da temperatura em minha pele.

Esse pensamento e o fato de que Ellie grita meu nome com a mesma intensidade que gritou quando eu fui para o Inferno, me despertam do transe. Eu percebo que estou dentro da casa e que minhas roupas estão pegando fogo, mas eu não.